Crítica | Cinema

Canção ao Longe

Para ocupar o vazio

(Canção ao Longe, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Clarissa Campolina
  • Roteiro: Clarissa Campolina, Caetano Gotardo, Sara Pinheiro
  • Elenco: Mônica Maria, Margô Assis, Jhon Narvaez, Matilde Biagi, Ricardo Campos, Carlos Francisco
  • Duração: 75 minutos

Clarissa Campolina não é qualquer realizadora. Responsável por obras ora essenciais (como Solon), ora inesquecíveis (como Girimunho, ao lado de Helvécio Marins Jr.), não tínhamos como imaginar que essa sua nova incursão no longa metragem não correria algum risco. Mas, diferente de apregoar suas capacidades, intentos e sensibilidade, ela foi lá e fez um filme, como se fosse pouco. Canção ao Longe pode cair na malha fina dos problematizadores, mas dessa vez eu realmente não vou entender os motivos. A destreza com a qual encara seu desafio é meritória em simplesmente se deixar levar por aquele desenvolvimento, por aquele universo prestes a eclodir, por uma verdade que nem se sabe ainda tão pulsante. 

Campolina filma o que falta sem saber direito o quê, apenas uma sensação escondida de que algo está fora do lugar. Jimena tem essa indagação constante: quem são essas pessoas com quem vivo? O amor que sente é insuficiente para compreender o que, para ela, está interrompido. É uma incompletude dentro de casa, nos lugares para onde olha, uma falta de identificação generalizada que a coloca à margem dos eventos. Ela só quer sair, não necessariamente fugir, mas ter seu próprio espaço, onde as peças possam se encaixar. Jimena nem ao menos está pedindo socorro; o que ela quer é entender o significado do desconforto, de sua falta de tato para o lugar que deveria lhe pertencer. 

Essa ausência interna não pode ser explicada a quem lhe rodeia; ela simplesmente sente assim. Jimena é filha de um pai ausente, um estrangeiro que há muito tempo voltou para o Peru, e não se comunica por vontade própria. Talvez ele possa entendê-la e lhe dar um norte, talvez não. O que Campolina faz em Canção ao Longe é filmar a síntese dessa falta de algo, essa verdade não dita mas estampada no rosto, na pele, na historicidade da cor. Nada é verbalizado ou enfatizado, mas temos aqui o caso de um implícito que vai se mostrando cada vez mais latente, sem jamais explodir justamente porque sua protagonista não consegue acessar respostas, e tem medo de fazer as perguntas. 

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Ao contrário de longas como Regra 34 e Vazante, Canção ao Longe não está pedindo nada ao espectador, que não empatia. Na atmosfera de estranheza social e psicológica sob a qual a protagonista está se descobrindo, não cabe outra amostragem que não a da tentativa de tatear no escuro da sua realidade. E o espectador mergulha junto com a protagonista no desconhecido, sendo colocado sutilmente em zona de convergência com uma nova perspectiva – incômodos não precisam ser sinal de negatividade, apenas é um sinal de que algo precisa ser urgentemente alterado. É isso que Jimena faz, precisa começar uma vida nova longe do encastelamento da casa de sua mãe; quando começa a perceber o mundo a sua volta, a protagonista se vê preparada para o novo, e deixar a demolição do passado acontecer sem medo. 

Canção ao Longe tem um caráter de identificação pessoal forte, mas precisamos estar abertos ao mais básico e comum possível, que é a mola mestra de qualquer vida, o banal. A ausência de conflitos mais definidos, que saiam de um local de reflexão interna, pode causar algum estranhamento, mas o filme consegue equilibrar suas defesas. Campolina consegue nos envolver com uma situação que não se revela com facilidade, e precisa da ajuda de elipses para fazer funcionar. O resultado é um drama pouco usual, que se vale de condições muito mais emocionais do que físicas para fazer valer seu ponto. É fácil reconhecer os códigos que a diretora já utilizou anteriormente, e a última imagem do longa é especialmente tocante, nos remetendo aos clássicos da Nova Hollywood. 

Ainda que em filme anteriores Campolina tenha explorado mais uma corporalidade de seus personagens, elevando suas obras pregressas com um jogo cênico mais feliz, esse Canção ao Longe guarda sensibilidade suficiente para que sua direção faça a diferença. Jimena é uma mulher que, ao não encontrar o seu lugar, resolve impor sua presença aos lugares que quiser. De maneira não-disruptiva, a personagem se conecta com uma eterna busca do ser humano, que aqui é traduzida por uma ancestralidade em vias de ser descoberta. É um caminho duro, que não é fornecido se não por sua objeção diante do normativo, e seu empenho de saber mais sobre si, seu interior e seu exterior. 

Um grande momento
O sonho de Jimena

[26ª Mostra de Cinema de Tiradentes]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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BRUNO TAUNAY GRIPP MOTA
BRUNO TAUNAY GRIPP MOTA
23/01/2023 15:15

 É fácil reconhecer os códigos que a diretora já utilizou anteriormente, e a última imagem do longa é especialmente tocante, nos remetendo aos clássicos da Nova Hollywood. ” Qual é a última imagem do longa, vi o filme na Mostra de Tiradentes, mas não me lembro. À propósito, achei a fotografia do filme deslumbrante.

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