Holy Spider, de Ali Abassi
(Dinamarca/Alemanha/Suécia/França, 2022)
Competição
La nuit du 12, de Dominik Moll
(França, 2022)
Cannes Première
Revoir Paris, de Alice Winocour
(França, 2022)
Quinzena dos Realizadores
Praticamente desde que a ficção foi incorporada ao cardápio de possibilidades expressivas da linguagem do cinema, a reconstituição de casos criminosos reais se constituiu como um dos mais recorrentes modelos de filmes populares – algo que, depois de inúmeras encarnações e evoluções na história do audiovisual, vai ter como fenômeno mais recente a explosão das séries documentais classificadas como “true crime”, um dos formatos mais explorados hoje pelos serviços de streaming. Os motivos para essa atração são inúmeros e complexos, já tendo sido objeto de muitos estudos e livros publicados, mas o que parece interessante apontar aqui é como esse verdadeiro subgênero do cinema mundial surgiu com algumas gradações diferentes no Festival de Cannes nos últimos dias.
Na vertente dos serial killers e dos processos de investigação, Holy Spider se dedica a um caso célebre no Irã para propor uma reflexão mais sistêmica sobre o abraço por uma certa ideologia conservadora e de parte do poder religioso local a um assassino que se dedica ao que considera uma missão sagrada de limpar as ruas de uma cidade de “mulheres impuras”. Trata-se de um tema de grande interesse, que apresenta inúmeras dificuldades práticas pro seu realizador, que precisou rodar seu filme na Jordânia, fazendo parecer ser o Irã. Ele mesmo, diga-se, é um iraniano radicado há tempos na Dinamarca, situação similar ao filho de imigrantes egípcios sueco Tarik Saleh, que exibiu na competição o longa Boy From Heaven, que por sua vez foi rodado na Turquia fazendo as vezes de Egito (e também num formato de conspiração policial envolvendo o poder local, ainda que aqui num caso totalmente ficcional).
Em Holy Spider, não há espaço para dúvidas sobre a identidade do assassino, a qual é revelada bem cedo na narrativa. O que interessa a ele é bem menos qualquer whodunit e sim ver em que momento (e se) o ciclo de crimes conseguirá ser interrompido, o que se daria essencialmente pelo trabalho investigativo de uma jornalista que não pode contar com muito apoio das autoridades locais na sua busca. Abassi filma tudo isso com muita competência formal, ainda que pouco brilho específico (mesma questão, de novo, de Boy From Heaven, que tem ainda mais cara de série da Netflix do que este aqui). Explorando alguns códigos do cinema de gênero na sua vertente mais realista, consegue criar bastante tensão e manter o interesse constante pelos próximos passos.
No entanto, apesar de toda competência, seu filme tem um problema central que não é exatamente de ordem estética ou narrativa: a grande questão é a forma como Abassi empresta protagonismo ao assassino, que tem tanto tempo de tela quanto a jornalista que o persegue, tempo esse que usa não só para efetuar seus crimes em sequências exploradas com grande sensacionalismo e manipulação do tempo real pela câmera de Abassi, como ainda para difundir sua ideologia torta em cenas que buscam, mesmo que não intencionalmente, criar um espaço de empatia para o seu “sofrimento”. São escolhas mais que questionáveis para um filme que aparenta tentar denunciar uma misoginia intrínseca ao sistema sociorreligioso, iraniano aafo mesmo tempo em que se refastela em cenas de enorme violência sobre os corpos femininos – inclusive, numa cena já quase no final, com uma menina pequena. Abassi claramente faz uso de tudo isso com desejo de plantar sua crítica maior ao sistema, mas é discutível o quanto sua operação é eficaz nisso, ou se apenas abre mais espaço para a fruição doentia dessa violência e até mesmo a simpatia eventual com o discurso do seu “monstro empático”.
Mais interessante, nesse sentido, são as opções do filme francês La nuit du 12, onde o assassinato de uma jovem dá início ao processo investigativo da polícia local. Ao contrário de Holy Spider, aqui a identidade do assassino é um mistério, e inclusive deixando claro desde o princípio que o mesmo não será resolvido. Essa indeterminação, ao mesmo tempo em que não permite a um assassino somar mais esse espaço de notoriedade póstuma, acaba nesse caso resultando bastante mais interessante na intenção de fazer com que a culpabilidade pelo crime se espalhe de maneira mais ampla. O policial responsável pelo caso vai ficando cada vez mais desconcertado pela investigação justamente porque parece identificar em todos os homens um potencial assassino, e portanto em todas as mulheres uma vítima possível. Na medida que evolui na direção desse sentimento, o filme vai ganhando densidade e peso, e consegue atingir o objetivo de deixar na boca um gosto ruim de algo muito mais sistêmico do que simplesmente a operação psicopata de uma mente doentia. É bastante desconcertante, ainda que na forma super direto com seu aspecto “procedural”.
A denúncia sistêmica também é o caminho escolhido por Nos frangins, novo filme do realizador franco-argelino Rachid Bouchareb, que mais uma vez se volta a uma história real para traçar um panorama dos difíceis laços de (não)aceitação das populações do norte da África na sociedade francesa. Aqui, voltamos aos anos 1980 (algo que tem sido recorrente no festival neste ano, já visto por exemplo em Armageddon Time e Les Amandiers), e a um caso muito célebre de violência policial, com a morte de dois franceses de origens árabes numa mesma noite, em circunstâncias distintas. Para Bouchareb, o que importa é representar aqui a dor das famílias, assim como destrinchar o processo pelo qual a polícia busca esconder e dificultar o acesso às informações sobre os acontecidos, tudo isso num filme de duração extremamente enxuta, que vai direto aos pontos. Como em alguns de seus filmes anteriores, como Dias de Glória e Fora da Lei, Bouchareb se confirma um encenador realista clássico de considerável elegância, que vem construindo uma obra marcada pelo desejo de recontar algumas partes da história francesa a partir da perspectiva das populações imigrantes, com claras intenções de ir ao passado para falar, no fundo, de hoje.
Finalmente, no novo filme de Alice Winocour o trauma é o grande protagonista, no acompanhamento de uma narrativa que, depois dos primeiros dez minutos que evoluem até um ataque terrorista num restaurante parisiense (ficcionalizado a partir de casos reais), vai acompanhar a tentativa de uma personagem em reencontrar o fluxo da sua vida, enquanto busca processar aquilo tudo que enfrentou e sobreviveu. Trata-se de um tema ainda pouco explorado e extremamente instigante, mas a forma escolhida pela realizadora acaba diluindo um tanto sua força através de caracterizações e derivas bastante pouco engajadoras, seja na forma bastante solene e auto-centrada de encenar, seja nas conexões no mínimo excêntricas entre personagens, seja também na maneira como vai incorporando outras subjetividades para além da protagonista e torna tudo um pouco genérico demais. É um típico filme que, ao buscar impor seu olhar por sobre a inspiração real, perde a mão nas doses, e não consegue nem iluminar mais sobre a realidade e nem nos engajar de todo na ficção. Ao fim e ao cabo, entre as clarezas de objetivo e as maneiras de chegar próximo ao peso dos crimes reais, a impressão que fica é de que, provavelmente, nessa vertente vale a máxima de que o “menos é mais”.