Crítica | Catálogo

5 Casas

Memórias de quem somos

(5 Casas, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Bruno Gularte Barreto
  • Roteiro: Bruno Gularte Barreto, Vicente Moreno
  • Duração: 85 minutos

Não acho que seja fácil assistir 5 Casas, para qualquer pessoa. Carregado de melancolia e de uma existência tão adensada quanto a que Bruno Gularte Barreto demonstra ter, o vencedor do último Cine Ceará e da fatia gaúcha do recém terminado Festival de Gramado é ainda mais angustiante a quem esbarrou pela vida com as barreiras do preconceito e da hipocrisia. Estreia dos cinemas nesta semana, a experiência de assistir ao longa, preciso dizer, não é facilitada pela forma como Barreto executa sua jornada estética. Mas é também quase impossível não partilhar uma catarse emocional e psicológica oriunda dessa mesma argamassa que o filme compõe. Nos tempos de 2022, a porção política que a produção adquire é inegável. 

Barreto é um diretor e artista visual jovem e gay, vindo de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul chamada Dom Pedrito, próxima aos 50 mil habitantes. Nenhuma dessas informações é descartável a esse texto, porque 5 Casas é sobre seu reencontro com esse lugar, mas principalmente com quem o ajudou a sobreviver em uma infância difícil por lá. Pessoas que sobreviveram a essa cidade, que ajudou a massacrar todos os cinco habitantes que estiveram junto de Barreto em seus piores momentos, mas que também venceram esse mesmo lugar, nem que seja por sua resistência a seus propósitos. Desses encontros nasceu a narrativa do filme, que é uma busca sensorial do seu autor por um passado que o transformou no artista que ele é, moldado por esses traumas – assim como aos seus entrevistados. 

5 Cinema
Vulcana Cinema

O diretor, que é múltiplo na arte, precisou destrinchar seu passado em inúmeras possibilidades artísticas onde o cinema é uma das áreas. Mas a montanha russa aqui é livre de suportes; o que acontece na tela aqui prescinde de elaboração prévia. Isso é verdadeiramente um mérito, porque projetos como esse geralmente são intercaláveis, e só fazem sentido quando o quebra cabeça completo é montado. Barreto destrincha a sua jornada pessoal e intransferível com humildade e empatia para identificar em outras pessoas, pedaços pequeninos (de maneira subjetiva; ao mesmo tempo gigantescos) de sua cura emocional. Sem jamais perder esse foco bifurcado, equalizando sua voz com a de seus esteios, o que nasce é um mosaico sofisticado de memórias e humanidade. 

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Observar as histórias por trás de 5 Casas é também mergulhar na nossa própria jornada, que também inclui bullying, solidão, reclusão, abandono emocional e físico, e pensar nos tantos suportes que levamos pela vida afora. Como um arqueólogo de si mesmo, Barreto nos ensina ao quê olhar dentro de sua obra, da iluminação difusa por dentro das fotografias envelhecidas, até o rosto de quem fala, que nunca está enquadrado dentro de um padrão esperado. É uma forma de resgatar os lugares perdidos de seu arcabouço emocional, sem deixar de prestar homenagem a quem os ajudou a suportar as pedras que eventualmente vieram. Com uma voz longínqua e profunda, adentramos com cuidado em cada veia aberta de Barreto – ou, mais precisamente, de Bruno – para encontrar os vestígios de outros que, como ele, também são sobreviventes. 

5 Casas
Vulcana Cinema

É por esses motivos que não é impeditivo se colocar pessoalmente entre os personagens ocultos de Barreto, porque a minha história em particular se desdobra no olhar daqueles seres distantes na geografia mas próximos no sensível. A fotografia de 5 Casas, a cargo do diretor e também Bruno Polidoro e Thiago Coelho, nos convida a um tempo outro que não o do cinema de hoje, mas em uma viagem ao centro de um ser. Iluminado de maneira delicada, e movendo-se com cuidado por entre passado e presente, o filme nos captura de maneira irrefreável para dentro de sua atmosfera, como a conceber um estágio diferente do humano, onde estaríamos em suspenso dentro das nossas escavações pessoais. O que sai dessa caverna dos sentidos é uma tentativa de descobrir uma forma de lidar com a dor incurável de ter sido mastigado por ser quem somos. 

Com todas as feridas expostas que cicatrizarão sem desaparecer, Barreto nos mostra o quão preciso é deixar para trás. Sobreviver aos escombros que nos moldaram, sem precisar nos arrastar junto com terra, tijolos e imagens. Essa é uma característica das falas de 5 Casas, é preciso encontrar o momento onde tudo aquilo será passado, e moldar o presente a partir dessa sobrevivência. Uma espécie de Il Buco humano, como um processo arqueológico caminhando por paredes feitas de nós mesmos, o trabalho de Barreto está no meio do caminho entre a jornada pessoal e o resgate do que nos constitui. Somos feitos dos encontros e das trajetórias também dos que nos acompanharam, e eventualmente ajudaram cada parede nossa a manter-se de pé. 

Um grande momento

Descobrir as fotos nos entulhos

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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