(Carlinhos e Carlão, BRA, 2020)
- Gênero: Comédia
- Direção: Pedro Amorim
- Roteiro: Carolina Castro, Célio Porto
- Elenco: Otávio Augusto, Matheus Costa, Marcelo Flores, Letícia Isnard, Victor Lamoglia, Luis Lobianco, Thati Lopes, Luis Miranda, Mariana Rebelo, Saulo Rodrigues, Thiago Rodrigues, Marcelo Souza
- Duração: 93 minutos
Indo direto ao assunto: Carlinhos e Carlão, novo filme de Pedro Amorim, é o tipo de produção nacional que a crítica detesta. Logo, provavelmente teremos uma enxurrada de textos declarando que preferiam furar os olhos a ter assistido o filme, mais uma vez relegando o produto comercial nacional a uma categoria indigente. Semana passada, o mesmo Amazon Prime que está colocando no ar essa produção que só não ganhou os cinemas por conta dos efeitos da pandemia COVID-19, disponibilizou Os Espetaculares, um filme onde nada funcionava. Naquele texto, eu dizia que a nossa produção popular não precisava ser tão rala, e é um filme que tenha ao menos essas qualidades que eu peço quando vou assistir a esse tipo de produto.
Não, o novo filme do realizador dos superiores Mato sem Cachorro e Divórcio não é excelente, não é muito bom. Mas, pegando emprestado uma palavra que coleguinhas críticos decretaram como sendo persona non grata em textos da vez, provavelmente é um filme muito necessário. Com certeza não pra mim e nem pra minha bolha, que sabem exatamente as regras do bem viver (creio eu), da liberdade sexual e do “cada um faz da sua vida o que bem entende”, mas comédias populares nacionais não atingem a necessidade na minha bolha – e eu vejo claramente que um filme como esse é elaborado para uma fatia muito maior que o universo LGBTQI+, que eventualmente dará umas boas risadas, entre uma rosnada ou outra.
Foi por falar única e exclusivamente “da bolha para a bolha” que a política mundial chegou no lugar onde chegou, sem entender que o que entendemos e como entendemos não é como nosso vizinho entende. Por mais didático, até ligeiramente tatibitati que certos discursos possam parecer de vez em quando, não podemos esquecer que o impacto de uma mensagem precisa alcançar o maior número de pessoas possível, e se uma única pessoa que assistir a Carlinhos e Carlão olhar para sua realidade e sentir um empuxo de mudança, terá valido a pena, e eu vejo esse sentimento perpassando a realização do filme.
Sim, existem lugares desagradáveis em sua abordagem, o filme não acerta sempre, não é uma explosão de gargalhadas o tempo todo e ainda por cima resolve de maneira nada aproveitável a questão do personagem homofóbico (me pergunto se a criminalização da homofobia não deveria ser uma pauta em cena, já que o filme abre espaço para uma abordagem séria), inclusive com um discurso antiquado ligando o ódio ao homossexual a uma propensão. Porém também olhando para o público a quem o filme principalmente decide apontar o dedo em reprovação, a cena final – embora possa ser discutível – pode ser lida como uma alfinetada.
A verdade é que Carlinhos e Carlão, ao espectador comum, será assistido por pessoas de inúmeras inclinações sexuais diferentes, porém – tomando liberdade na exposição, que sei que é reprovada pela crítica em geral – como gay que sou, foi difícil assistir ao filme desde o prólogo pela identificação, onde ouvi as palavras daquele pai, que dizia ser errado um homem ser afeminado, e fui arremessado direto na minha própria infância, onde escutei por muitos anos a mesma coisa. A jornada metafórica de Carlos, que aprisionou seu desejo sexual verdadeiro ao travestir de “ão” o “inho”, é a mesma jornada de todos nós, independente do tempo em que o armário foi aberto, porque uma hora ele é.
Cinematograficamente, Amorim já demonstrou que tem recursos suficientes para não entregar uma produção de fundo de quintal, e isso fica evidente aqui, e os figurinos de Renata Russo (!!!) são de extrema criatividade, assim como poderia ter sido a direção de arte se o filme se ativesse a ela com mais afinco. Na levada de novas produções criativas em seu tratamento imagético como Alice Junior, a produção tem um frescor na forma como capta seus planos e em como realiza seus efeitos práticos na tela, discretos porém eficientes.
Ainda que o elenco não seja amplamente aproveitado (o filme conta com uma seara de novos comediantes de primeira linha, como Thati Lopes, Pedroca Monteiro e Victor Lamoglia, e não os utiliza em tudo que eles têm pra oferecer), é necessário ressaltar que o veterano Otávio Augusto (Bendito Fruto) ocupa cada mínimo espaço de tela para dar seu recado e dá, com ênfase e sutileza ao mesmo tempo. Luis Miranda (Madame Satã), em participação especial, também é um ator de recursos tão vastos que sua marca fica impressa mesmo tão rápido. Mas é difícil olhar pro filme e não se impressionar onde chegaram Luis Lobianco e Marcelo Souza.
O primeiro é o dono dos personagens-título do filme e, ainda que force a barra em primeiro momento pra demarcar o terreno em suas duas vertentes de atuação, consegue a sensibilidade de aproveitar a câmera para despejar uma verdade que é a de tantos homens, sejam jovens ou adultos, no caminho de adquirir pra si e pro mundo uma verdade sobre quem sempre foi, que precisou ser afogada por conta da sociedade. O diretor compreende o talento de seu protagonista e consegue passear pelas cenas em busca do rosto do mesmo, como quando Carlão diz ter compreendido o sofrimento alheio apenas por querem amar, ao posicioná-lo no canto e aproximar lentamente a câmera.
Já o segundo é um capítulo à parte. Como um jovem homem gay, eu frequentei todo tipo de boate no Rio de Janeiro na década passada, e fui observando shows de drag queens que eu conheci a personagem mais icônica do meu tempo: Suzy Brasil, um manancial de talento performático, carisma e bom humor avassaladores, Mais de 10 anos após conhecê-la, eu vi Suzy finalmente explodir em diversos programas de humor na TV, a começar pelo Ferdinando Show, como uma espécie de partner de Marcus Majella. Suzy é a persona drag de Marcelo Souza, que demonstra aqui, além de todo o talento que eu conheço há tantos anos em cima dos palcos, uma invejável presença cênica, se provando muito maior que um performer – um belo e promissor ator.
O desfecho de Carlinhos e Carlão, pós um clímax violento onde se denuncia a violência e crueldade a que passam diariamente todos os LGBTQI+ na sociedade hoje (e que o filme nunca deixa de apontar, desde o início), é tão consagrador e tem um sabor de liberdade tão grande, que eventualmente as lágrimas são difíceis de segurar; os planos rápidos no rosto de Cláudio Mendes, que vive o irmão do protagonista, são o suficiente pra que sintamos a vergonha se transformando em orgulho, exatamente tudo que desejamos que aconteça na família de cada pessoa perseguida pelo direito de amar quem quiser.
Um grande momento
Guga chega para salvar