(Crímenes de familia, ARG, 2020)
Observar esse Crimes de Família e ver sair dele obra tão sólida e envolvente é ter a certeza que não é preciso uma história mirabolante, uma direção gritada em méritos e feituras, ou um malabarismo estético que sacuda nossas percepções. Contando com esmero coletivo e vontade de fazer valer sua narrativa simples na superfície porém profundamente complexa no diapasão das relações humanas e no desenrolar da sua dramaticidade, a estreia de hoje da Netflix engendra tão bem seu quebra-cabeça particular que é difícil não reconhecer os modestos méritos de um roteiro tão bem desenvolvido, repleto de questões universais em companhia de pautas muito atuais e prementes.
O diretor Sebastian Schindel (de O Filho Protegido) adapta uma trama desenvolvida a partir de eventos reais com muita parcimônia e cuidado, sem jamais resvalar no enfadonho ou desinteressante, moldando a teia da família protagonista e unindo o desenvolvimento de três mães completamente diferentes entre si, que em comum tem o laço invisível que as conectam aos seus filhos incondicionalmente. É um filme com profundo respeito não apenas ao amor de mãe, quase o elevando a uma entidade que a tudo comporta e compreende, mas principalmente muito consciente de como mulheres podem se repelir ou se conectar de maneiras muito intensas e definitivas.


Schindel, até por ter escrito o roteiro junto a Pablo Del Teso, tem controle sobre quais elementos acessar ao longo da produção, e exatamente em que momentos cada nova camada é acrescentada. A simplicidade já citada não é sinônimo de ausência de dramaturgia ou leveza no tratamento, pelo contrário; o jogo que o filme estabelece é resultado de uma montagem sofisticada que coloca em paralelo duas das três histórias do filme, necessariamente Alicia e Gladys, patroa e empregada. Através de dois processos judiciais distintos descascados pelo filme em paralelo, conhecemos cena a cenas os motivos que levaram dois personagens a cadeia, numa abordagem nada inovadora, porém empregada com sutileza e eficácia pelo montador Sebastian Schjaer.
Talvez falte aos personagens masculinos a precisão de relevo que o roteiro dá a suas mulheres em cena, não restrito a Alicia, Gladys e Marcela; em exemplo paralelo, há uma psicóloga vivida por Paola Barrientos que não apenas se desenvolve em três cenas, como ocupa muito espaço graças ao cuidado que a mesma apresenta na sua organização de ideias. Já os personagens masculinos, incluindo os dois protagonistas, tem funções muito mais pontuais e expositivas do que reveladoras de suas sombras internas. Ainda que esse recorte seja parte da proposta, a opção pela primazia da voz faz que com que o filme soe vago aqui e ali, ainda que não comprometa sua compreensão narrativa.


Em uma obra com tanta minúcia emocional, o elenco bárbaro que o filme tem a sua disposição era mais do que necessário; podemos dizer que são eles os agentes responsáveis pelo elevado teor de comprometimento que o público se vê compelido a embarcar. Os desempenhos dos veteranos Cecilia Roth (de Tudo Sobre Minha Mãe) e Miguel Angel Solá (de O Vazio do Domingo) é construído todo em cima de um naturalismo tão cru, que junto com o trabalho de Yanina Ávila (de Uma Espécie de Família) dão o tom da narrativa, criando uma rede de apoio para cenas de tribunal opcionalmente pesadas porém cruciais para que suas camadas ganhem vida.
Nesses depoimentos do tribunal estão o coração de Crimes de Família, que monta cuidadosamente seu mosaico de sororidade insuspeita e nada panfletária tendo essas cenas como base de construção, desconstrução e reconstrução. Se os momentos de Sofia Gala Castiglione e Benjamin Amadeo são, em cada momento particular, duas pauladas de entrega, emoção e complexidade para seus personagens, Alicia e Gladys têm a palavra em situações singulares para ambas, que acabam por trazer muitas tintas que abrem um leque para suas narrativas próprias, e que acabam por uni-las ainda mais. Sem fazer alarde, o filme nos tira da zona de conforto para observar camadas obscuras de maternidade e a união feminina sob uma ótica inusitada, repleta de ramificações.
Um grande momento
O depoimento da psicóloga.
Ver “Crimes de Família” na Netflix
Cecilia Roth, Miguel Ángel Solá, Sofía Gala Castiglione, Benjamín Amadeo, Yanina Ávila, Paola Barrientos, Marcelo Subiotto, Sebastián Schindel