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Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

(Never Rarely Sometimes Always, EUA, GBR, 2020)

  • Gênero: Drama
  • Direção: Eliza Hittman
  • Roteiro: Eliza Hittman
  • Elenco: Sidney Flanigan, Talia Ryder, Sharon Van Etten, Ryan Eggold, Théodore Pellerin, Salem Murphy
  • Duração: 101 minutos
  • Nota:

“Você nunca desejou ser um cara?”
“O tempo todo.”

Meninas de dezessete anos que vivem numa cidadezinha no interior da Pensilvânia não tem muitas razões para se alegrarem. Entre o tédio e a falta de perspectiva, lidam com assédios e a incompreensão dos pais; com o desprezo dos meninos-que-fingem-ser-homens e as tratam com violência: com um serviço de saúde que as culpabiliza por suas vidas sexualmente ativas, que as inflam de remorso ou pintam soluções fáceis como “muitas pessoas que não podem conceber desejam lindos bebês”. A verdade é que se o Brasil hoje representa o atraso em várias esferas, inclusive em relação aos direitos reprodutivos das mulheres, muitas localidades conservadoras dos EUA estão longe de proporcionar qualquer vislumbre de esperança para mães adolescentes.

Eliza Hittman escreve e dirige um dos grandes filmes dos últimos tempos, que não faz concessões e nem tenta disfarçar a miséria da condição feminina num doloroso tour de force de uma jovem grávida em Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre. O filme disponível no Now e premiado em Sundance e Berlim, faz eco aos acontecimentos atuais no mundo, onde, na virada de 2020, o parlamento da Argentina aprova a legalização do aborto e nos primeiros dias de 2021 é a vez da Coreia do Sul tornar o aborto legal.

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Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

Autumn (a estupenda Sidney Flanagan) engravida e não sabe a quem recorrer ou o que fazer para interromper aquele processo que transcorre no seu corpo. Só conta com a prima Skyler, com quem divide o penoso trabalho como caixa de supermercado. A jornada delas dá o tom do road movie urbano, com planos absolutamente melancólicos e dolorosos nos rostos das duas adolescentes no ônibus ou vagando pelos metrôs e ruas de Nova York. A luz e os enquadramentos, em profunda empatia pela experiência feminina, trazem a marca da fotografa francesa Hélène Louvart (de A Vida Invisível), um trabalho impecável somado a outras colaborações incríveis como a de Julia Holter, que assina a minimalista trilha sonora.

Após a agudeza com que expôs os lastros dos sonhos esmagados de um jovem gay em Beach Rats, Eliza Hittman tem, nas expressões, na timidez e na aura de fragilidade táctil da Autumn de Sidney, a síntese da vivência feminina num mundo que é hostil e inóspito para este gênero. Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre é feito de desolação mesmo quando surge a solução, afinal, nada será como antes. O filme traz sequências que tampouco sairão da memória, como a do doloroso diálogo que dá título ao filme, ou o verdadeiro calvário vivido junto a prima. É muito amadurecimento forçado, muita tristeza para suportar e superar para quem ainda nem saiu da adolescência.

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre

I wish I could show you how much
You’ve grow

A música “Seventeen”, cantada por Sharon Van Etten (que também interpreta a mãe da protagonista) ilustra um outro momento precioso desse pequeno grande filme. Autumn está se observando – Hittman inclusive utiliza muito bem contra planos e espelho – e pensando nas parcas opções que tem. Ela quer provar que ainda tem algum domínio sobre o próprio corpo, pode escolher e fazer o que quer, mesmo que o mundo grite o contrário. E poderia ser uma adolescente no interior da Pensilvânia, numa localidade de Bangladesh, em uma periferia do Recife ou em qualquer microcosmo onde a mulher querer ser dona da própria vida é um desafio.

Um grande momento
Laço entre primas no meio da agonia.

Ver “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” no Now

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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