Crítica | Outras metragens

Dois Estranhos

Nada como o terror de um dia após o outro…

(Two Distant Strangers, EUA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Ficção
  • Direção: Travon Free, Martin Desmond Roe
  • Roteiro: Travon Free
  • Elenco: Joey Bada$$, Andrew Howard, Zaria
  • Duração: 32 minutos

Em um dos episódios recentes mais polêmicos do BBB21, o cantor Rodolffo comparou o cabelo de uma peruca pertencente à fantasia que teve de usar para uma prova ao de um outro participante, o professor João. Mesmo sem ter consciência, o participante incorreu em racismo recreativo, tema sobre o qual o advogado e escritor Adilson Moreira discorreu em seu livro homônimo, “Racismo Recreativo”, onde versa sobre essa modalidade racista, onde explicita o viés discriminatório da Justiça brasileira, quando absolve atos violentos quando cometidos para fins de diversão irrestrita. Indicado ao Oscar de melhor curta-metragem de ficção, o filme Dois Estranhos acaba de estrear na Netflix e essa discussão pode ser observada a partir do lugar onde o filme se arvora.

Dirigido por Trevon Free e Martin Desmond Roe e escrito somente pelo primeiro, o filme é definitivamente uma porrada incômoda por motivos múltiplos, incluindo o sistemático assassínio da população negra americana (e mundial) por meios oficiais, também conhecidos por profissionais de segurança que deveriam proteger e servir ao contribuinte, e não exterminá-los. Provavelmente filmado durante a pandemia, ou seja, após a escandalosa morte de George Floyd por policiais em ato covarde e imperdoável, o filme também é reflexo desse e de tantos crimes anuais que acontecem pelo mundo quando a força bruta inesperadamente age com intenção de matar o cidadão comum, especialmente quando ele é negro.

Dois Estranhos

Com uma estrutura que lembraria uma versão cada vez mais macabra e amarga de Feitiço do Tempo, o protagonista do filme acorda continuamente ao lado de uma jovem que conheceu na noite anterior, e ao tentar voltar pra casa, tem um encontro definitivo com um policial. Ininterruptamente, esse encontro acontecerá e o desfecho, em vãs tentativas de Carter, acaba sendo o mesmo, inclusive ao percebermos que seu destino possa ou não ser perpetrado pelo policial Merk – o problema não é do policial, o problema está em Carter, mais precisamente na cor de sua pele, que o condena diariamente à mesma encruzilhada, por mais de uma centena de vezes, ou seja, eternamente.

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Por trazer em sua estrutura uma certa abordagem que poderia ser cômica de acordo o olhar de alguns, o filme estaria sendo acusado de incorrer nesse já citado racismo recreativo, mas observo essa determinada leveza de maneira muito relativa, sem nenhum propósito de acessar o humor e sim uma exasperação crescente rumo ao impacto de sua mensagem, que é muito clara. Em cena, um homem é morto repetidas vezes, haja o que houver, faça o que fizer, argumente o que argumentar. Na pauta, está o que vemos todos os dias nos jornais: negros são assassinados apenas por serem negros, e não é isso que o filme tenta denunciar, tendo inclusive encontrado o formato exato pra contar essa história?

Com a fotografia impecável de Jessica Young colocando em perspectiva inúmeras possibilidades imagéticas a cada novo avanço dramático de uma estrutura que já parecia esgotada em tantas revisões que já sofreu, os males do racismo estrutural (esse sim, discutido deliberadamente em cena), que atinge negros e brancos mas só provoca a morte de um grupo, é investigado desde a observação mais rasa e óbvia e vai sofrendo uma sofisticação abrangente, até propor o que poderia ser a salvação de um embate que só vitima um lado. Mas fica ao menos uma constatação pertinente: porque é sempre a vítima que precisa começar o diálogo e tentar entender o outro lado, apresentando uma humanidade que naturalmente deveria caber a todos?

Com atuações superlativas de Joey Bada$$ e Andrew Howard protagonizando a obra, Dois Estranhos, assim como Bela Vingança, tem consciência dos riscos que corre ao flertar com o politicamente indevido (mais do que incorreto) para dar constantes socos no espectador, ao declarar que negros morrem. E, muitas vezes, ser bem sucedido socialmente, tem uma boa aparência, ter as melhores intenções, ou ser o mais inteligente possível e conseguir encampar um diálogo produtivo e frutífero, não é o suficiente. Nada parece suficiente quando, simplesmente, uma raça quer exterminar a outra. Lutar sempre, lutar todos os dias. E como diz a música de Bruce Hornsby que permeia toda a obra, as coisas são assim… mas nenhum de nós precisa acreditar neles.

Um grande momento
O primeiro diálogo entre os protagonistas

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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