Crítica | Festival

Glória à Rainha

As herdeiras do trono

(Glory to the Queen, GEO, 2020)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Tatia Skhirtladze, Anna Khazaradze
  • Roteiro: Ina Ivanceanu, Tatia Skhirtladze
  • Duração: 82 minutos

Geórgia. Entre Rússia, Turquia, Armênia e Azerbaijão um lugar cheio de história tinha tudo para ser marcado pela vanguarda feminista pelos avanços alcançados por uma mulher chamada Tamara que, no século 12, mesmo com toda a oposição que sofreu, transformou o país. Invasões, dominação, conflitos, guerras, incorporação à União Soviética e uma forte influência religiosa desviaram o caminho, mudaram a configuração e vieram os rígidos costumes, relegando a mulher a um segundo plano. A estrutura patriarcal é aquela conhecida também por aqui: a função de servir como objeto de satisfação e procriação, de manutenção e organização do lar. A que cuida e serve. Glória à Rainha fala sobre estruturas e rupturas, sobre propaganda, manutenção e exemplo. Sobre mulheres que em sistemas rígidos têm opções e como elas são retratadas para que não virem exemplos.

Glória à Rainha até cita Tamara, numa fala muito rápida sobre a Geórgia e suas heroínas, mas não tem nada a ver com ela. A rainha de que fala é a do tabuleiro. O documentário de Tatia Skhirtladze e Anna Khazaradze é uma bela homenagem a Nona Gaprindashvili, Nana Alexandria, Maia Chiburdanidze e Nana Ioseliani, as maiores enxadristas do país, com inúmeros títulos mundiais e jornadas que inspiravam os seus compatriotas e serviam ao sistema. O filme mescla passado e presente mostrando o que essas mulheres representam para outras mulheres que hoje, e por causa delas, carregam seus nomes. Ao mesmo tempo, volta ao passado mostrando como a propaganda soviética as apresentava para a população, enquanto as próprias documentadas contrariam as imagens, relembram suas rotinas e falam sobre seu presente.

Glória à Rainha

Ao respeitar a máxima que inicia o filme de que ninguém pode contar a sua história muitas vezes, ou melhor, “ninguém pode contar a sua história”,  Skhirtladze e Khazaradze partem para descobrir o que existe de Nona, Nana, Maia e Nana em tantas outras mulheres georgianas que nada têm a ver com elas. São pessoas de origens, credos e classes diferentes; donas de casa, policiais, guias de turismo, professoras, enxadristas e tantas outras que ganharam de seus pais os nomes daquelas que se tornaram símbolo do país e de quem falam com muito orgulho. Por trás disso, a relação ancestral do lugar com o xadrez — onde um tabuleiro do jogo fazia parte do dote da esposa — e lampejos de enfrentamento ou com a relação de dominação estabelecida à força com a URSS ou com a própria igreja, dependendo do ângulo que se olhe.

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De outro lado, maior do que essas questões, o machismo em seu estado mais puro, e o medo de que essas mulheres de tanto relevo e sucesso tornassem-se exemplos de libertação, inadequação às regras sociais ou aos costumes. Enquanto seus feitos eram alardeados, campanhas de imagem simultâneas aconteciam. Skhirtladze e Khazaradze resgatam o material e faz um belo trabalho ao colocar as próprias personagens comentando as imagens. Quem seriam aquelas donas de casa, mães e filhas? Há um jogo curioso ao imaginar o peso dessas imagens na relação com os nomes das jogadoras. Uma vez que o filme é todo baseado em como essas quatro mulheres estão em outras mulheres através de seus nomes e todas falam sobre a escolha destes por seus pais ou mães, não há como não pensar em até que ponto essas imagens foram determinantes nesta escolha. E mais interessante ainda é pensar em como cada uma destas individualidades transformou essa referência uma vez que viveu em uma outra época, regime e realidade.

Glória à Rainha

Paralelamente às construções políticas e sociais, Glória à Rainha fala também de xadrez, é claro. O filme não poderia deixar de exaltar os feitos da maior enxadrista da Geórgia e uma das melhores do mundo, Nona Gaprindashvili, a primeira georgiana a competir com homens e a primeira mulher do mundo a receber o título de Grande Mestre. As disputas emblemáticas das quatro e os duelos entre elas, incluindo a vitória de Maia Chiburdanidze sobre Gaprindashvili encerrando um longo período de invencibilidade. Questões como o estímulo à competitividade, sempre muito exacerbado durante a Guerra Fria — uma marca que se mantém mesmo após as mudanças dos anos 1980 — não deixam de ser citadas no filme e aparecem discretamente, em comparação com outros países ou em comentários domésticos.  

Glória à Rainha é um filme-homenagem, mas é também um retrato complexo das relações de um país com a sua identidade e de o quanto ela foi alterada após um regime e inúmeras modificações e interferências. Do local para o pessoal, é um apanhado de como a imagem da mulher foi construída e de o quanto a força de seus símbolos é constantemente combatida e até mesmo deturpada. Em sua investigação, Skhirtladze e Khazaradze descobrem o poder dessa imagem e de como ela é assimilada, o que representa e de que, embora a vida leve para outros caminhos, intenções e manipulações não ser capazes de alterá-la.

[26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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