Crítica | Festival

Duas Company Towns

Estrada. Carro passa. Um complexo, uma construção abandonada. Homem idoso caminha pelos corredores vazios e analisa um mapa, apontando locais, cargos e estruturas onde costumava funcionar a companhia. Capital estrangeiro do pós guerra; se Soldados da Borracha mostra como o interesse pelo Brasil surge no auge do conflito bélico, empreendendo projetos desenvolvimentista no “inferno verde” durante a Era Vargas, Duas Company Towns atualiza a história de exploração “made in USA”.

A desilusão, a falsa esperança na prosperidade e na salvação da miséria advinda da chegada de companhias multinacionais e do investimento no capital estrangeiro são as motrizes do trabalho investigativo da documentarista Priscilla Brasil. Com o lançamento de Duas Company Towns, ela segue transformando em narrativa documental as histórias falidas desses projetos – no ano passado, essa espécie de antologia foi inaugurada com Amazônia Ocupada, que estreou no festival Amazônia Doc. Radicada em Portugal, a cineasta paraense vem desde Filhas da Chiquita produzindo na região, entre filmes e séries, visões únicas sobre a Amazônia, suas peculiaridades e com um interesse particular em dar voz aos povos da floresta.

Duas Company Towns

Os projetos passam, as minas chegam à exaustão. O abandono entra em curso. Pessoas são deixadas ao relento, em cidades onde grandes projetos deixaram uma lacuna de desenvolvimento gigante. Priscilla Brasil procura ex-funcionários da Icomi, comerciantes das duas cidades (Santana e Serra do Navio), moradores das redondezas, familiares que perderam entes queridos em acidentes trabalhistas, vários personagens que de alguma forma foram impactados pela “febre do manganês” que varreu a região do Oiapoque, onde ficam os municípios, do final da década de 50 até meados dos anos 90.

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Serra do Navio talvez seja mais conhecida pelos fãs e curiosos da internet como o local de nascimento da vocalista do Pato Fu, Fernanda Takai. Mas para quem vive na Amazônia, ambientalistas, jornalistas, especialistas e os que se interessam pelo impacto de projetos ditos “desenvolvimentistas”, é a primeira das cidades amazônicas – o município criado oficialmente apenas em 1992 – que cumpria o propósito de ser uma vila para morada dos funcionários da companhia. A ela centenas se seguiram, transformando a região onde alcança o bioma num grande canteiro de obras, sendo talvez a mais conhecida a Serra Pelada no município de Curionópolis no Pará.

Duas Company Towns

Em 2007, Priscilla Brasil inclusive estreou na TV pública o DOCTV “Serra Pelada – esperança não é sonho“, o primeiro filme documentário dessa leva que investiga o antes e o depois na vida das pessoas que trabalharam, deram suas vidas e foram engolidas pela sana gananciosa das mineradoras. Em Duas Company Towns o principal suporte narrativo são as entrevistas com os anônimos, aqueles impactados pela saída da Icomi – o fim da era próspera em que Eike Batista era o dono da companhia e um dos homens mais ricos do mundo – que lembram como era (e o trabalho de edição, da própria Priscilla, abastece o relato usufruindo de um vasto material de arquivo), dando uma costura fantasmagórica ao documentário.

O passado traz vozes, alegria e a efervescência da época em que as cidades tinham utilidade. O hoje é cheio de silêncios, espaços nas falas. E os offs deles, quando ilustram imagens aéreas dos locais abandonados tem uma potência, urgente e melancólica. O primeiro corte do filme foi feito, nas palavras da própria realizadora, para inscrever no Amazônia Doc e As Amazonas do Cinema. Talvez não seja o corte final ou talvez a carga de incompletude que imageticamente ele imprime seja uma metáfora do estados das coisas. A ver.

Um grande momento
O relato de mãe e filha sobre um dia de trabalho sem volta.

[1º As Amazonas do Cinema]

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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