Crítica | Festival

Soldados da Borracha

(Soldados da Borracha, BRA, 2019)

  • Gênero: Documentário
  • Direção: Wolney Oliveira
  • Roteiro: Wolney Oliveira
  • Duração: 83 minutos
  • Nota:

Reza a lenda – traduzida como fato em livros de história – que durante a operação Netuno, na segunda guerra mundial, em 6 de junho de 1944, quando do desembarque das tropas aliadas na praia de Omaha, na Normandia, a guerra foi ganha e Hitler vislumbrou seu fim. Como a estória escrita e transmitida por gerações sempre é a dos vitoriosos, ingleses, canadenses e especialmente norte-americanos creditam a si o mérito de ter derrotado o nazismo e libertado a Europa.

Porém, aos fatos históricos se seguem aquelas narrativas que pouca força têm para vir à tona, não por não serem incríveis mas sim por muitas vezes não ser possível vocalizar os relatos de anônimos, como os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira que foram enviados para combater na Itália ou os homens e mulheres que deixaram a pobreza e a fome no nordeste para empreender uma aventura na Amazônia, em 1942, que aí sim ganharia a guerra para os aliados: dominar a produção mundial de látex, matéria-prima da borracha.

Soldados da Borracha

Parecendo pitoresca mas cheia de personagens fascinantes como a seringalista Lourdes, Soldados da Borracha é a narrativa dos vencidos, que nunca receberam os louros pela sua contribuição inestimável no maior conflito bélico do século 20. O cineasta cearense Wolney Oliveira reúne alguns dos homens e mulheres que foram voluntários – ou foram forçados pelos militares – a ir para a Amazônia empreender uma “guerra da borracha”, pois os tanques, armamentos e outros utensílios de guerra usados no front careciam do material. Quando lançou o filme no Cine Ceará exatamente um ano atrás, Wolney contou como é apaixonado pelo tema e já havia feito um DOCTV (Borracha Para a Vitória), um média-metragem inclusive.

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Com mais recursos, ele dedicou seis anos a construir o longa e voltou ao tema fugindo de uma estrutura mais expositiva e convencional para unir o cinema de arquivo aos recursos clássicos do documentário numa estrutura bastante “elástica”, que vai expandindo o universo da história, a partir do Ceará, sendo Fortaleza a cidade que sediou o Serviço Especial de “Mobilização” de Trabalhadores Para a Amazônia (SEMTA). E é por meio dos relatos orais, da memória dos soldados, dos filhos, netos de personagens da época, que se constitui o filme, ainda servindo como suporte para a causa dos trabalhadores.

Soldados da Borracha

Esses “soldados da paz” – mais de 60 mil ao longo de três anos -, vitimados pelo processo migratório durante a Era Vargas, buscam o reconhecimento pelo feito heroico e uma aposentadoria. O filme acompanha, em determinado momento, quando a narrativa se solidifica no final da guerra e na ausência do reconhecimento getulista – sendo que o governo brasileiro embolsou cerca de 105 milhões de dólares para produzir e exportar a borracha -, a luta de algumas dezenas de homens e mulheres na miséria pela indenização justa. Por justiça social.

Idas a Brasília marcam reencontros, evocam histórias da época no meio da floresta e nos seringais, até a conclusão com a aprovação do pagamento de R$ 25 mil reais a cerca de 8 mil soldados e soldadas da borracha – pouco mais de 13% dos que sobreviveram a anos de condições desumanas se abastecendo de ilusões. A situação se torna ainda mais pitoresca quando relatos dão conta de que as peças publicitárias da época, para ganhar corações e mentes para a causa, eram inspiradas em seringais da Malásia – uma biodiversidade totalmente distinta da de uma floresta equatorial. Com o cruzamento de infográficos super engenhosos, mapas ilustrados, a trilha de DJ Dolores vai trazendo uma pesquisa das marchinhas e músicas ufanistas com músicas incidentais que dão tempo entre os depoimentos para os personagens refletirem, lamentarem e rememorarem suas vidas.

Soldados da Borracha

Outro elemento importante é o jornalista norte-americano Gary Newman, que vai trazendo dados históricos e oficiais sobre o fato e a negociação entre Brasil e EUA, além de outros especialistas que descortinam a ilusão fantasiada de patriotismo que conquistou corações de brasileiros sofridos com a seca no Nordeste, criando a segunda Era da Borracha na região Amazônica que cumpriu um papel fundamental na geopolítica do mundo – mesmo que não seja do conhecimentos de quase ninguém.

Bom, não era, mas se torna conhecida a partir de Soldados da Borracha, que está atualmente disponível na Mostra Ecofalante. E o orgulho daquelas pessoas pobres, modestas e super honradas, comprometidas com o bem do país (diferente da maior parte dos políticos que dominam o cenário nacional), com suas medalhas e espólios ou a memória que não os deixa esquecer da sua importância, torna valiosa a narrativa da resiliência.

[9ª Mostra Ecofalante]

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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