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Raquel Hallak fala sobre a CineOP 2023

Em entrevista, a coordenadora da mostra faz um balanço da 18ª edição

À frente da Universo Produções, empresa realizadora de três dos mais importantes festivais do país, Mostra de Tiradentes, CineOP e CineBH, a produtora cultural Raquel Hallak tornou-se uma referência no setor, em especial quando se pensa em política audiovisual. Apaixonada pelo assunto e dedicada à causa, fez dos seus eventos, cada um com uma característica, espaços para, além da difusão de filmes, discussão de ideias e proposições de soluções para as questões enfrentadas pelo cinema brasileiro.

A Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, tem como foco primeiro a preservação e abraça também a educação. Sua 18ª edição já começou marcada por uma sensação de retorno completo, não só da situação causada pela pandemia – embora 2022 já tenha havido edição presencial, ainda pairava um certo receio da doença –, mas pela esperança que chegou com o fim de um governo que virou as costas para a cultura e fez com que o cinema, o audiovisual, além de outras áreas, entrassem em uma grave crise.

Para além das exibições de filmes e de uma tocante homenagem ao cantor e compositor Tony Tornado, reunindo representantes de vários setores, com grupos técnicos e reuniões de trabalhos temáticos, as trocas foram intensas nos seis dias de evento. Entre os primeiros resultados estão a Carta de Ouro Preto 2023 de Preservação, assinada pelos membros da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual – ABPA e os participantes do Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais, com a atualização do Plano Nacional de Preservação Audiovisual, e a Carta de Ouro Preto 2023 de Educação, redigida pela rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual – com o Plano Nacional de Educação Digital.

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“É uma edição especial em vários sentidos”, como disse Hallak que conversou com o Cenas sobre a CineOP 2023. Ela falou sobre a estrutura do evento, o retorno e fez um breve balanço da edição, além de falar também sobre a questão dos festivais de maneira geral. 

A programação da CineOP é muito intensa, são muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Temos a mostra, com as exibições, e discussões riquíssimas, seja nos debates ou nos encontros dos grupos de trabalho. Há todo um trabalho de pensar temáticas específicas, encontrar filmes que dialoguem e que se encaixem e aprimorem a discussão. Como é feito tudo isso?

Estamos falando de um evento onde ocorrem dois congressos dentro de um festival de cinema. Porque o encontro da preservação e o encontro da educação são estruturados com mostras específicas, com debates específicos, rodas de conversa, masterclasses, workshops, reuniões de trabalho, reuniões setoriais que estão pensando as ações emergenciais, as diretrizes, as resoluções finais que vão estar expressas nas cartas tanto de um quanto do outro.

Tem também a temática histórica, que é esse recorte de olhar o passado com o olhar contemporâneo e ainda tem a contemporaneidade nos filmes em pré-estreia, além de toda uma programação que dialoga com a cidade, pois estamos em uma cidade universitária. Como é um evento que se propõe fazer um encontro da educação, a gente está atento ao que se pode realizar em conjunto com a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Essa estrutura de programação já é o formato anual de cada evento e o desafio é encontrar os pontos de interseção. O que é que vai estar dentro de um guarda-chuva que pode representar a temática central, que esse ano foi “Memória e Criação para o Futuro”. A gente pensou na retomada do diálogo com o governo federal; em como está o processo do patrimônio audiovisual brasileiro, que a preservação dá conta; o que a gente traria da história que poderia ter um viés mais popular, menos tecnicista; e da educação, o que é sempre um desafio, a educação digital.

Então, a partir disso, contrato as equipes curatoriais, uma dupla para cada temática e todos nós, juntamente com a equipe da Universo, começamos a pensar em qual vai ser o da edição, o que se espera, o que é mais urgente discutir, como a gente vai estabelecer a CineOP como espaço de articulação. É quando as ideias começam a surgir, se pensa se o homenageado vai sair da história, da educação ou da preservação, por exemplo. 

Inicialmente, é uma construção conjunta com a equipe curatorial, depois se individualiza em cada temática, quando as duplas vão pensar, e depois a gente se reúne e vê – esse ano a gente viu coisas que estavam na educação que eram mais arquivo, coisas que estavam no arquivo que eram mais educação, inclusive convidados que apareciam nas duas – então a gente vai fazendo essa formatação, a programação acaba ficando muito intensa, muito cheia de conteúdo e traz essa proposta diferenciada de a gente pensar um festival para além dos filmes.

Nessa seleção tem ainda uma mostra contemporânea. Como ela se integra na programação? 

A gente sempre teve a mostra contemporânea, assim como sempre teve filmes restaurados, que são cases de restauro. Dentro da mostra contemporânea, quando o filme de arquivo é contemplado para a gente é perfeito, porque a ideia é, no contemporâneo, privilegiar filmes que representam novas obras a partir do uso dos arquivos, dos acervos. Então, quando isso acontece, como a gente está vendo aqui com Lupicínio Rodrigues, Diálogos com Ruth de Souza, O Cangaceiro da Moviola e vários outros filmes da programação, há um diálogo ainda maior com o que a gente está falando na preservação. Preservar para dar acesso. 

Quando a gente começou, isso praticamente não existia. Era muito raro você ver um filme novo com essa configuração. Quer dizer, quando a gente começou, o documentário mal era considerado cinema. E não tinha muito isso de pensar no filme que está fazendo um resgate da história, de arquivo, de memória.

CineOP 2023: Raquel Hallak
Leo Lara/Universo Produção

E sobre o retorno? A 17ª CineOP foi a primeira edição de um festival da Universo depois da pandemia, mas ainda havia algum receio, as pessoas ainda não estavam totalmente confiantes. Como você em vê essa 18ª edição?

Acho que é uma edição especial em vários sentidos, não só pelo retorno já mais consolidado de eventos de modo geral, não só de festival, mas dessa vida mais normal do que era antes. Mas eu acho que, principalmente, porque a gente está com um novo governo, com a presença do Ministério da Cultura, do Ministério da Educação. E esse é um evento em que o diálogo com a gestão pública é fundamental para que avanços sejam conquistados. 

A gente está há sete anos sem interação com o governo, desde o impeachment da Dilma. Acho que nessa edição as pessoas estão voltando com esse novo fôlego, com essa nova perspectiva de dialogar, de fazer uma construção coletiva. A CineOP é um espaço privilegiado de discussões da preservação, da história e da educação, eleita pelo próprio setor da preservação como o espaço de encaminhamento das discussões. 

Quer dizer, essa soma do perfil diverso da mostra e essa oportunidade do encontro, com uma resposta positiva, estão fazendo dessa edição uma edição especial. 

Falamos aqui de várias políticas, de várias propostas e conversas possíveis com o governo. E a questão dos festivais, como anda?

Eu acho que o circuito de festivais ainda não tem uma política em que ele se enquadre. A gente está desenvolvendo, recomeçando esse diálogo, porque ele não é contemplado no Fundo Setorial e nem é visto como mercado, embora seja a principal alternativa de janela para o cinema brasileiro diante da escassez e da ausência de quota de tela para o cinema brasileiro.

O papel dos festivais na formação de plateia, na oportunidade de exibição requer uma atenção especial. O setor todo está com uma expectativa de que essa conversa aconteça. Em relação a esse campo de atuação, especialmente em festivais e mostras – dos quais a gente faz três –, ainda há uma carência gigantesca de proteção do Estado, seja através do MinC, seja através da Ancine. A gente está com essa ausência, com essa lacuna, e, inclusive, vários festivais foram interrompidos na pandemia. 

Mas existe uma movimentação. Já aconteceram encontros de festivais…

O Fórum de Festivais já esteve inclusive com a Joelma Gonzaga, secretária do audiovisual, e fez esse apelo, porque é emergencial. A gente tem ali uma Lei Paulo Gustavo e uma Lei Aldir Blanc, mas isso não representa uma polĩtica mais ampla de Estado voltada para esse segmento que gera empregos, que gera desenvolvimento e que, principalmente, representa a principal janela de exibição do cinema brasileiro.

Pensando na possibilidade de janela, pensei aqui no on-line, uma das coisas que apareceu e mostrou muitos lados positivos. Nesta edição, a CineOP tem uma programação on-line bem significativa. Parece que é uma coisa que veio para ficar. O que você acha sobre isso?

A pandemia trouxe uma transformação, fez a gente se reinventar e não deixar de fazer as edições anuais do evento. Trouxe também a noção da importância de você estar conectado e de ser uma janela – no nosso caso o sinal é aberto para o Brasil e para o mundo, sem limites de visualizações, o que representa o investimento de promoção e difusão do nosso trabalho de internacionalização do cinema brasileiro.

Não tem mais como abandonar o on-line, ele veio para ficar. Do mesmo modo, não podemos deixar de fazer o presencial, porque a troca presencial é muito rica, de conhecimento, de pessoas, de ideias. Então, quando a gente pode conjugar essas duas coisas, acho que fica uma equação perfeita.

Durante a pandemia, o nosso primeiro evento on-line foi a CineOP e a gente teve um registro de alcance maravilhoso. Foram mais de 300 mil usuários que acompanharam durante seis dias; na Mostra de Tiradentes, também on-line, no ano seguinte, foram mais de 550 mil. Foi um aprendizado do alcance, de você poder assistir de onde você está. 

Quer dizer, não podemos perder de vista todos os benefícios que o on-line traz, por isso que aqui a gente programou 70 filmes dos 125 selecionados. Ou seja, os principais títulos, que norteiam as três temáticas do evento, puderam ser assistidos por quem não pôde estar aqui.

Olhando agora para tudo o que aconteceu, qual é o balanço que você faz da 18ª CineOP?

Eu acho que, como falei nas mesas em que participei, a gente tinha algumas missões. As duas principais eram a atualização do Plano Nacional de Preservação e a discussão da Política Nacional de Educação Digital.

A atualização do Plano Nacional de Preservação foi construída de forma coletiva, em um processo que começou em 2008 e foi finalizado em 2016, quando esse projeto, de fato, ficou pronto. Ele seria entregue ao Juca Ferreira, então ministro da cultura, que viria à CineOP, receberia o plano e, em seguida, abriria consulta pública para construir uma política de Estado. Nós voltamos ao passado, onde isso ficou, trouxemos essa proposta para o atual Ministério da Cultura e, em janeiro, quando realizamos o Fórum de Tiradentes, criamos um grupo de trabalho da preservação para conversar de forma transversal, algo que nunca tinha acontecido. Técnicos de preservação conversaram com produção, circulação, exibição, formação, e isso resultou num relatório maravilhoso e extremamente atual, mais atual inclusive do que o plano, e eu fiz a proposta de a gente definir como missão o se debruçar sobre essa atualização, a partir desses dois materiais e o do Conselho Superior do Cinema.

A ideia é construir um plano que contemple a atualidade, até porque o plano anterior, quando construído, ainda não previa o digital. Ele foi muito pensando levando em consideração a película, era uma outra realidade. Além disso, no GT de preservação do fórum foram apontadas várias construções de futuro próximo com o que já estava configurado, e o que se configurou no encontro de arquivo deste ano. A principal delas é a formação de uma rede nacional de acervos audiovisuais, o que é uma falha no Brasil e foi o que impulsionou, inclusive, a criação da CineOP: você não ter acesso aos acervos, não saber onde estão as cópias, o estado delas, quem são seus donos. Então isso, 18 anos depois, continua, mas é a primeira vez que a gente tem essa discussão e, também, um respaldo na Secretaria do Audiovisual para construir essa rede dos arquivos que daria conta do tamanho do Brasil. Essa descentralização diante das dimensões territoriais é a única saída para que a gente entenda essas produções regionalmente e como se acessa, enfim, pesquisadores que vivem disso. 

A nossa outra missão era discutir a Política Nacional de Educação Digital, que a gente começou antes do evento, e gerou um material muito rico. A lei foi sancionada pelo presidente Lula em janeiro, mas ela é muito rasa, tem cinco páginas, não aprofunda nada e é, realmente, uma lei que pode ser uma mudança de paradigma em um ambiente escolar. Então, a preocupação era que ela fosse pensada por quem ensina, por quem forma, e a gente fez um convite principalmente aos acadêmicos que estudam cinema e educação para que lessem a lei e contribuíssem com aspectos que merecem atenção e destacassem o que podem ser pontos frágeis e quais são os pontos fortes. Foi como chegamos a um material tão bacana que editamos e lançamos aqui. 

Eu acho que, com esses dois feitos dentro de dois grandes encontros, que têm as suas interseções, mas ao mesmo tempo têm as suas especificidades, estamos saindo daqui com resultados muito revolucionários nessa retomada tanto do MEC quanto do MinC. Chegamos à maioridade com um marco histórico!

[18ª Mostra de Cinema de Ouro Preto]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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