Crítica | FestivalMostra SP

Cozinhar F*der Matar

O moto-contínuo do machismo

(Cook F**k Kill, CZE, SLK, 2019)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Mira Fornay
  • Roteiro: Mira Fornay
  • Elenco: Jaroslav Plesl, Petra Fornayová, Regina Rázlová, Jan Alexander, Jazmína Cigánková, Irena Bendová
  • Duração: 116 minutos

Estava a velha em seu lugar…

Cozinhar F*der Matar fala de sequências e repetições em uma história cumulativa, que volta sempre maior ao mesmo ponto, como “A Velha a Fiar”, “A Casa de Pedro” ou mesmo a “Justificativa do Lobo”, que abre o filme. No centro de tudo está Jarik, alguém que é eliminado a cada vez que erra, como naquela brincadeira “Eu fui a feira”. Em sua ciranda de equívocos e fracassos, o protagonista depende de todos os membros da família para entrar na casa da vovó e pegar seus filhos.

Vovó só abrirá a porta para Jarik se Blanka entregar as chaves, Blanka só vai entregar as chaves se a mãe de Jarik lhe der o apartamento, a mãe de Jarik só vai dar o apartamento se Kamil cozinhar para ela, Kamil só cozinhará se Gustav matar, Gustav só vai matar se Jane lhe der as facas.

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Cozinhar F*der Matar, filme de Mira Fornay selecionado para a 44ª MostraSP

A diretora Mira Fornay, não economiza na estranheza. Ilustra sua apresentação com paisagens, espaços vazios, cores marcantes e figuras esquisitas. De cara estabelece a diferença de gênero como uma das marcas do filme: as mulheres determinam o caminho e perseguem, os homens repetem velhos gestos de um patriarcado carcomido e buscam o protagonismo perdido. Há violência reprovável e há consequência, num jogo que, infelizmente, nunca termina.

O perdido Jarik, em uma atuação competente de Jaroslav Plesl, vaga em meio às repetições com seu personagem equivocado, que tenta encontrar um rumo mas não merece prosseguir. Fornay, que também assina o roteiro, vai lá e o joga no recomeço, como falando que só haverá futuro se houver mudança. Zombando, chega a fazer o personagem experimentar a realidade que não é sua e é quando interrompe o continuum, causando uma nova busca pela chance de recomeçar.

Cozinhar F*der Matar, filme de Mira Fornay selecionado para a 44ª MostraSP

A galeria de personagens reafirma a mensagem, com quebras pontuais, mas que representam a incrustação de métodos e crenças na sociedade como um todo. A violência de Gustav encontra a equivocada percepção normalizadora de Blanka, que repete o modelo vivido na infância em seu próprio casamento, independentemente do papel social que exerça. A força de Cozinhar F*der Matar está nessa contradição que perpassa todo o filme, mas também está aqui e em tantas casas do mundo inteiro. “Porque eu sou o lobo”.

A diretora passa sua mensagem de maneira pesada (seria impossível não ser assim dado o conteúdo), mas o faz de maneira instigante, justamente por deixar a obviedade para cenas específicas e não para a forma como elas se apresentam ou são inseridas no conjunto. É preciso mergulhar no amontoado, no desfile de personagens e eventos absurdos até que a trama se revele e comece a fazer sentido.

Cozinhar F*der Matar, filme de Mira Fornay selecionado para a 44ª MostraSP

Como na literatura de acumulação em que se baseia, Cozinhar F*der Matar tem um traçado narrativo complexo, que precisa de inserções para ser pleno. E elas surgem em tela, percebidas e vivenciadas por Jarik, estranhadas pelo espectador, e voltando sempre ao mesmo começo para falar da perpetuidade de convenções e preconceitos. “Se eu tivesse tido uma filha, eu seria mais feliz”, diz a mãe sem saber que não nesse mundo. Enquanto tudo acontece, de novo e de novo, a velha, trancada no quintal, continua em seu lugar.

Um grande momento
A gangue de Jane.

[44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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