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Filhos do Ódio

Sobre omissões e escolhas

(Son of the Soul, EUA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Barry Alexander Brown
  • Roteiro: Barry Alexander Brown
  • Elenco: Lucas Till, Jim Klock, Michael Sirow, Jake Abel, Cian Genaro, Mike Manning, Lucy Hale, Cedric the Entertainer, Sharonne Lanier, Nicole Ansari-Cox, Bram Fuller, Brendon Fuller, Gina Cielo, Joey Thurmond, Rodney Clark, Nicole Lamb, Brian Dennehy, Julia Ormond
  • Duração: 105 minutos

“Se vemos algo que não é certo, que não é justo temos a obrigação moral de falar algo e de fazer algo”

Ku Klux Klan. O Movimento Pelos Direitos Civis e Igualdade Racial. O sul dos Estados Unidos. Esse contexto e cenário já rendeu ótimos filmes e seus personagens continuam tendo suas jornadas transpostas para o cinema. Filhos do Ódio conta o início da trajetória de Bob Zellner, um homem branco que tinha tudo para seguir a tradição familiar de espancar e matar pessoas negras.

O Mississippi está em chamas. E o Alabama idem. Na cidade de Montgomery as tensões raciais também provocam cisões entre famílias de brancos, como a de Zellner (vivido por Lucas Till, o Destrutor da franquia X-Men) cujo avô é membro da KKK. Apesar de ter o apoio do pai, ex-membro da Klan e pastor metodista, em sua luta por “justiça e liberdade”, ele tem que lidar com a revolta que provoca por ter virado “amante de pretos”.

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Filhos do Ódio se passa durante um par de meses do ano de 1962, adaptando a obra autobiográfica “The Wrong Side of Murder Creek”. Produção executiva de Spike Lee, o filme estreou bem na Netflix, galgando seu lugar entre os títulos mais assistidos na plataforma.

“Se não é comigo, tudo bem”

A exemplo de Estrelas Através do Tempo, Filhos do Ódio possui uma estrutura narrativa bem convencional e linear além de não contar com uma grande elaboração visual. Logo se o trabalho do diretor Barry Alexander Brown beira à mediocridade, cabe a Lucas Till manter o interesse na trama e desenrolar do filme. E ele consegue sustentar bem, fazendo a transição do bom menino sulista alienado para o militante resiliente.

Tudo começa em Filhos do Ódio quando Zellner e colegas de faculdade querem fazer um trabalho sobre relações sociais e quase são presos após ir até a igreja Batista do pastor Abernathy (Cedric The Entertainer) observar a comunidade e conversar com Rosa Parks (Sharonne Lanier). Parks que cinco anos antes, tinha sofrido um incidente no ônibus ao se recusar a ceder seu lugar para um branco e já estava estabelecida como uma das grande líderes do movimento pelos direitos civis antes que a perseguição racista a fizesse fugir para Detroit.

Por reconstituir um dos movimentos mais fundamentais do século 20 é que Filhos do Ódio também guarda uma importância ímpar, como tantos outros dramas sociais, por proporcionar uma aula de história. Além de Parks outro líder que aparece no filme (dando entrevista na tv) é o congressista John Lewis, falecido no ano passado. O filme é inclusive dedicado a Lewis que foi amigo e mentor de Bob. E a presença dele na história, como presidente da SNCC – o comitê Coordenador Estudantil Não Violento – puxa uma das sequências mais eletrizantes do filme: a chegada dos ativistas conhecidos como Freedom Riders à cidade.

A trilha que percorre os estereótipos do sul branco e caipira, a montagem monocórdica e os demais aspectos técnicos do filme de Barry Alexander Brown são poucos cinematográficos na acepção da palavra que trata da excelência da mis en scene. As reconstituições em preto e branco que se fundem as imagens de arquivo são esteticamente mal feitas mas passam o recado.

Com a estética de um telefilme ou uma série do Canal Lifetime, Filhos do Ódio traz como grande rival de Zellner seu próprio avô, um dos líderes da KKK que de forma muito singela, diz para o neto que se ele for realmente a um determinado protesto ele mesmo se encarregará de enfiar uma bala na cabeça dele. O antagonismo também surge na lembrança de colegas de infância que diziam “está no seu sangue bater com o taco nos pretos” e na namoradinha Carol Ann (Lucy Hale), farta dos rompantes de heroísmo que põem o futuro a perder.

Mas a chegada de Derek Ang (Ludi Lin) a Montgomery vai mudando a mentalidade de Bob. Em particular a cena em que Ang, filho de imigrantes chineses lembra quando era criança e tinha que usar uma placa pendurada no pescoço escrito “chino” provoca comoção. Mesmo sendo difícil enxergar do alto do privilégio, ele começa a entender que o ódio não distribuem seus alvos e algo muda dentro de si quando houve do amigo que: “Um dia uma coisa ruim vai acontecer bem na sua frente e você vai ter que escolher um lado. Não escolher será uma escolha.”

Claro que Filhos do Ódio, na tentativa de tornar mais atraente ao público a história de Zellner enfia um romance no meio. O triângulo amoroso que se avizinha entre o rapaz louro, Carol Ann e Joanne (Lex Scott Davies) quase que tira o foco da jornada principal.

“Joana D’Arc se rebelou contra todo mundo e foi queimada na fogueira”

O primeiro ponto de virada do filme se concretiza com a ida de Zellner para Atlanta, estado da Georgia, para ser voluntário no SNCC. Lá ele reencontra Joanne e se depara com uma realidade difícil de lidar, com o relato de pessoas negras sendo mortas apenas por se inscreverem para votar.

Para os norte-americanos do Sul, brancos que apoiam a luta dos negros por direitos iguais e são tachados de comunistas e considerados lunaticos por querer por abaixo as Leis Jim Crown de segregação racial.

O segundo ponto de virada da trama é a ida de Bob para McComb, no Mississippi – onde ocorreu uma caminhada, semelhante a mais importante de todas do período, retratada em Selma, filme de Ava DuVernay. E o clímax, com a punição que se apresenta na narrativa elipticamente, como um flashback no prólogo do filme, não tem a mesma potência daquela presente em Mudbound de Dee Rees mas tampouco atrapalha o fecho de Filhos do Ódio.

Preso e detido 17 vezes apenas três anos, o primeiro branco a liderar uma passeata pelos direitos civis, criador do Mississippi Freedom Summer e considerado um dos fundadores da SNCC…. O fato é que uma trajetória tão rica e inspiradora quanto a de Zellner merecia um filme menos burocrático.

Um grande momento
“Nunca conheci ninguém que falasse comunismo, fala alguma coisa aí pra eu ouvir”

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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