Crítica | Catálogo

Flow

União silenciosa e persistente

Há filmes que não precisam explicar. Flow é um deles.
Ele começa com silêncio e permanece nele, mas esse silêncio não é vazio. É som de água, de pata arrastando madeira, de respiração desconfiada. Um gato, sozinho, sobrevive entre ruínas flutuantes. Nada mais parece ter sobrado. Nem gente, nem abrigo, nem chão. Só água e deriva. O mundo está à parte, alagado e distante, e o que resta é o instinto.

Na solidão, o encontro acontece.
Um a um, outros animais surgem. E com eles, o desconforto. Um cachorro, uma capivara, um lêmure, um pássaro. Criaturas diferentes, com gestos que não combinam, que não se entendem. O barco é pequeno, os corpos se tocam, as vontades colidem. A convivência começa com recusa. Com disputa. Com medo.

E é assim que Flow se torna um filme sobre estar junto.
Não no sentido idealizado, não como harmonia fácil, mas como tentativa. Uma tentativa que não é imediata, que precisa do tempo do corpo e do gesto. O que esse grupo aprende não é o caminho para o consenso, mas a necessidade de existir junto mesmo sem querer. Mesmo sem entender o outro por completo. O barco só se mantém se todos estiverem ali. Se um cai, os outros desequilibram.

A ausência de palavras não diminui nada.
A linguagem do filme é feita de olhares, aproximações, afastamentos, ritmos. Há uma ética no modo como os planos se desenham. A água tem peso, tem voz. A madeira molhada range. O vento muda. O céu pesa ou alivia conforme os vínculos se estabelecem.

A beleza está no simples e no suave.
A direção de arte não se impõe. Ela se dobra à simplicidade da proposta, mas cria beleza a partir do mínimo. Um reflexo que se estende, uma folha boiando, um rastro de movimento. Há cenas em que quase se esquece que se está vendo uma animação. O tempo se dilata como se a narrativa quisesse ensinar a esperar.

E mesmo com esse passo calmo, há urgência.
O mundo está acabando, e talvez a única forma de continuar seja essa: juntar o que restou. Não por afinidade, mas por sobrevivência. Não por semelhança, mas por necessidade. O afeto que se forma não é uma escolha. É a única possibilidade.

Mostrando a força da união.
Flow é sobre um coletivo que nasce do imprevisto. Um grupo que não se escolhe, mas se sustenta. E nesse sustento há cuidado, há generosidade, há falha. Há tudo que compõe a vida quando ela precisa ser vivida junto.

Um filme que não quer dizer, quer ser sentido.
E quando termina, é impossível não carregar seu silêncio com a gente.

Um grande momento
Pássaro protetor

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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