Crítica | Catálogo

Garoto Chiffon

Entretenimento de risco

(Garçon chiffon, FRA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Nicolas Maury
  • Roteiro: Maud Ameline, Sophie Fillières, Nicolas Maury
  • Elenco: Nicolas Maury, Nathalie Baye, Arnauld Valois, Theo Christine, Laure Calamy, Jean-Marc Barr, Florence Giorgetti, Laurent Capelluto, Andrea Romano, Isabelle Huppert
  • Duração: 108 minutos

Jeremie é um personagem quase anti-empatia, à primeira vista. Por conta do seu comportamento com o namorado, a forma como negativiza a própria relação e sua carreira como ator, o ar de quem está eternamente sofrendo uma grande injustiça, de quem o mundo só prejudica, não ajuda a empatizar com Garoto Chiffon, estreia de hoje da Imovision. Os primeiros 20 minutos do longa são verdadeiramente complexos para que consigamos compreender uma pessoa extremamente tóxica e nociva com as benesses que a vida lhe dá. Jeremie se arrasta em cena durante boa parte da duração do longa, e em determinado momento começamos a acompanhar as justificativas em torno de suas atitudes.

Não sabemos se Nicolas Maury tem consciência do risco que correu com seu projeto, e seu anti-herói naturalista. Protagonista, produtor, roteirista e diretor, o filme não poderia ser mais autoral, talvez uma visão ultra estereotipada acerca de uma profissão repleta de carência e uma luta inglória contra um sistema que não permite o erro, aliás, como a vida. Maury faz parte do elenco da série Dix pour Cent, que trata do universo da dramaturgia através de um cenário particular, uma agência de talentos. Ele carrega da série essa visão ácida a respeito de um mundo onde vivemos muito mais de “nãos” que de “sims”, e é preciso sobreviver a cada um deles, em ambiente de constante luta e tentativas diárias de não enlouquecer.

O filme então se imbui dessa personalidade irascível, que não consegue controlar a extremada falta de auto estima. É suficientemente complexo compreender suas atitudes, quando o filme mostra cena a cena ele errando cada vez mais em todas as suas ações, e deixando atrás de si um rastro de destruição emocional que só o prejudica. Aos poucos, porém, conseguimos nos aproximar dessa carga tão pesada de destempero, assim que ele se aproxima de sua mãe, tão intrometida quanto coruja. Através desse espelho invertido, vemos o reflexo das perdas familiares que ele sofre desde a infância, o isolamento, a angústia desde cedo, que transformaram seu filho em uma espécie de armadilha para si mesmo.

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Com todos os riscos que corre, Garoto Chiffon conseguir se livrar de um ranço muito óbvio que seu personagem desperta muito rapidamente, já seria um feito e tanto. Que a uma certa rejeição merecida, o filme ainda surpreenda ao não se tratar de uma comédia (nem romântica nem rasgada nem nada; como alguém ri do terror proposto por Jeremie?, só quem nunca foi alvo de um ciúme tão doentio) e sim de um tratado psicológico sobre a dependência afetiva e suas origens, é algo notável. Seu ponto de observação em relação a um homem adulto que age como alguém que escolheu não crescer na vida também é um dado narrativo a ser analisado, tendo em vista que a sociedade abriga essas pessoas hoje.

Maury é um ator dos mais talentosos, e nos hipnotiza com esse personagem tão peculiar, repleto de imperfeições mas cuja humanidade vai florescendo e deixando sua marca no longa ao longo da projeção. É muito fácil repelir Jeremie, mas o ator promove gradativamente uma reconstrução no nosso imaginário de um cara que precisa de ajuda, sem saber pedir. Existe a possibilidade do espectador terminar o longa ainda desaprovando o ciumento mórbido, mas não terá como negar que a crescente exposição de seus sentimentos o tornam demasiadamente humano – ok, talvez até em excesso. Essa construção cheia de encruzilhadas é conduzida por um autor que puxa para si os riscos de observar de perto o horror da falta de amor próprio, que só destrói seu redor.

A provocação que Garoto Chiffon faz é daquelas onde a identificação pessoal pode passar despercebida, mas em análise posterior é algo que tende a crescer. Com um ritmo um pouco desigual, que não percebe as gorduras provocadas por uma duração além da conta, o filme conta com um elenco bastante acima da média (Nathalie Baye, Arnaud Valois e Laure Calamy, em geral, estão muito à vontade e completos de personalidade) para filmar esse momento nada agradável da vida de alguém, quando percebemos que nossos defeitos nos arrastou pra lona. A pior movimentação – mas também a única possível – é juntar todos os cacos e admitir o horror que fizemos com nossa vida.

Um grande momento
O encontro com a atriz/diretora

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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