Crítica | Festival

Quatro Meninas

Os perigos da forma

(Quatro Meninas, BRA, 2025)
  • Gênero: Fantasia
  • Direção: Karen Suzane
  • Roteiro: Clara Ferrer
  • Elenco: Ágatha Marinho, Alana Cabral, Dhara Lopes, Maria Ibraim, Duda Batsow, Duda Matte, Gabi Cardoso, Giovanna Rispoli, João Vitor, Dani Ornellas
  • Duração: 89 minutos

Era uma vez quatro meninas que não fugiram sozinhas. Antes de se esconderem naquela casa impenetrável, elas viviam em um reformatório, submetidas às sinhás brancas que as maltratavam. Na noite da fuga, não puderam simplesmente partir, foram obrigadas a carregar consigo as mesmas jovens brancas que as oprimiam. O ponto de partida que o Quatro Meninas, de Karen Suzane, escolhe transformar em conto de fadas é esse: meninas negras escrevendo o próprio destino, meninas brancas se infiltrando em uma história que não compreendem, nem fazem questão de compreeder.

A lenda começa bem, com promessa de rito e reparação, mas logo revela a armadilha da forma. A estrutura dos contos maravilhosos, com casa encantada, protetora mística e provações individuais, aproxima o público, abre portas para o imaginário, mas também suaviza o que deveria ser incisivo. A fantasia funciona como véu, quando talvez fosse necessário ruptura.

Enquanto as meninas negras ganham traços de trajetória, com medos, desejos e cicatrizes, as meninas brancas permanecem sem rosto, sem vontade, sem história. Parecem sombra, massa acusadora, símbolo do privilégio sem complexidade. A alegoria tem força, mas o risco é grande, pois retirar a subjetividade também é uma forma de absolvição. Nenhuma delas responde pelo mundo de onde vieram, apenas existem, imóveis, como peças decorativas.

O antagonista masculino, inserido como ameaça, repete essa fragilidade. É perigo sem densidade, um mal anunciado, mas nunca verdadeiramente confrontado. Sua função é sustentar a tensão e, ao ser encarado de frente, não há efetividade no ato. Em contos de fadas, ele seria figura de lobo; aqui, é apenas ruído. Sem ameaça concreta, não há transformação verdadeira, só passagem de tempo.

E é aí que o filme entra em terreno perigoso. A beleza da fábula aproxima, mas a gravidade do tema exige atrito. Ao imaginar um refúgio mágico onde as feridas seriam cuidadas e uma ameaça comum a ser combatida, o filme corre o risco da conciliação involuntária. Um país com a história do nosso não pode tratar isso como resolução. Encantar é fácil; encarar é o que falta.

Ainda assim, é preciso reconhecer o mérito do gesto. Há coragem em levar quatro meninas negras para o centro da narrativa, em imaginar um protagonismo que nunca foi permitido a elas. Há beleza em inventar um lugar onde sejam intocáveis. Mas isso, por si só, não fecha a fábula. Porque nenhuma menina negra deste país foi salva pelo milagre, e talvez nunca seja.

Era uma vez é só o começo. Porém, histórias como essa não podem terminar com “viveram felizes”. Vivem. Apenas isso. Vivem, apesar.

Um grande momento
Os caroços da laranja

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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