Crítica | Festival

Porcelain War

A dubiedade do discurso

Algumas histórias escolhem nascer no meio do caos, assim como Porcelain War. O documentário acompanha três artistas ucranianos que permanecem em Kharkiv enquanto sirenes não param de tocar e ruínas não param de surgir. O que antes era cidade vira fronteira e ees escolhem continuar criando com câmeras e porcelanas, moldando um gesto de resistência no meio do entulho.

Dentro de ateliês improvisados, Slava Leontyev molda pequenas figuras de porcelana. Criaturas delicadas que parecem desafiar a brutalidade ao redor. Anya Stasenko as pinta com cores vivas, como se fosse possível devolver ao mundo a intensidade que a guerra tenta apagar. Andrey Stefanov, pintor e cinegrafista, registra tudo durante as explosões. As peças, frágeis, são resistência materializada.

O documentário constrói um contraste constante entre o som estridente dos alarmes de ataque e o silêncio concentrado do trabalho artístico. Enquanto o ateliê vira trincheira, a música traz um ritmo que nunca suaviza a tensão, mas a sustenta. É uma trilha que não serve de alívio, e sim de convocação, lembrando que a cultura é também campo de batalha.

A montagem alterna imagens da linha de frente com planos lentos e detalhados das peças. Há uma coreografia precisa, com a câmera percorrendo ruas destruídas e depois se detendo sobre o pincel que toca uma superfície branca. O filme não busca neutralidade nem objetividade, se posiciona ao mostrar que, diante da destruição, continuar criando é um ato de resistência.

Mas é justamente na escolha de se posicionar que o filme se perde. Em alguns momentos, a narrativa parece se aproximar perigosamente de uma propaganda de guerra. Quando as armas entram em cena, o que até então se sustentava na delicadeza das peças e na força silenciosa da arte começa a se confundir com a retórica bélica que a própria obra questiona. A fragilidade, que antes era força, começa a correr o risco de ser engolida pelo discurso militar.

No fim, a guerra segue, os ataques continuam e as peças ainda nascem das mãos que resistem. Porcelain War deixa o espectador diante de um trabalho que teima em existir. Porém, não deixa se contradizer ao flertar com a lógica que deveria tensionar. Como as figuras que dão título ao filme, o documentário mostra que a fragilidade não é o oposto da força, lembrando que essa força se fragiliza quando se deixa capturar pelo discurso equivocado.

Um grande momento
A primeira escultura

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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