- Gênero: Drama
- Direção: Alain Resnais
- Roteiro: Marguerite Duras
- Elenco: Emmanuelle Riva, Eiji Okada, Stella Dassas, Pierre Barbaud, Bernard Fresson
- Duração: 90 minutos
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– Eu conheço tudo de Hiroshima.
– Não, você não conhece Hiroshima.
Assim se desenvolve a primeira parte de um dos maiores clássicos da História do Cinema, Hiroshima, Mon Amour, dirigido por Alain Resnais. É nesse diálogo entre um casal formado por uma mulher francesa e um homem japonês que essa fatia inicial nos apresenta seu embrião. Ela defende os lugares que viu e as pessoas que conheceu ao chegar à cidade; ele retruca, e o movimento parece aludir ao que podemos depreender a respeito da falta de espaçamento necessário para uma análise embrionária. O que conhecemos a respeito de algo se dá através de uma compreensão intrínseca que apenas a nacionalidade atribui, ou somos capazes de verdadeiramente descobrir a essência das coisas como observadores passivos – apenas?
Resnais sempre referendou suas narrativas através do diálogo, e da compreensão entre os seres a partir dele; é o entendimento que nos moverá adiante, e a falta de consciência narrativa acerca de nós mesmos promoverá o caos. Isso estava no passado, em Meu Tio da América, e esteve até o fim, em Vocês Ainda Não Viram Nada – a conexão virá através do encontro, e nele o intercurso necessário é a dialética que se estabelece entre os seres. Aqui, o mestre francês da comunicação sai de um lugar estabelecido a partir da ação (o encontro entre amantes) para provocar o espectador a investigar esses dois personagens dentro do que eles abrem um ao outro, refletindo também sobre o que não ficará explícito.
Dentro do que se apresenta, Hiroshima, Mon Amour ainda discute dois recortes dentro de um mesmo olhar, o privado e o público. Caminham juntos o encontro entre esse homem e essa mulher, e a superfície por onde eles passeiam – o pós-Segunda Guerra Mundial, e o papel fundamental que a cidade ganhou dentro do conflito, de simbolismo forte e capacidade indelével de representação metafórica. Em suas dimensões paralelas, esse casal está em aproximação em situação tórrida para também organizar essa reflexão a respeito do que foi feito a partir do conflito, e em como as inter-relações podem comunicar a História, e em como esta pode definir o sensível micro.
De alguma forma, olhando à luz de 2022, é complexo rever o longa de Resnais e não observar os ecos que a obra gerou em Murakami e na adaptação de seu conto, transformando-se no grandioso Drive My Car. Em 1959, o autor francês se debruçou com maestria pra falar de um luto incessante que se seguiu após a destruição do Japão durante a guerra, do reflexo externo a essa ressaca física e moral de um país destruído, e que clamava por uma reparação transformada em melancolia por Ryusuke Hamaguchi. A relação estabelecida pelo casal protagonista aqui tem o calor da intensidade que aquele momento produziu, ainda encarcerado em uma dor tão profunda que só poderia ser transvestida de paixão avassaladora.
Pelas mãos de Resnais, esse luto ainda recente do fim da guerra se mostra de maneira direta, quando um envolvimento amoroso se suspende para a entrada em cena do passado, representado por uma passagem envolvendo a protagonista e o que parece ter sido sua primeira história romântica, justamente com um soldado alemão. E se essa jovem atriz francesa agora se encanta por um herdeiro direto da guerra, a dor de ter perdido um símbolo da motivação da mesma a coloca em situação de incontrolável ambiguidade, que perpassa toda a trajetória do filme. Através dessas duas histórias, unindo um presente e um passado, o roteiro desemboca de forma agridoce duas parcelas de comprometimento com a guerra.
Não é à toa inclusive que a personagem de Emmanuelle Riva seja atriz, e esteja em processo de filmagens durante o próprio Hiroshima, Mon Amour. Essa informação não apenas enriquece a personagem, como reitera um caráter metalinguístico caro ao seu autor e assim presente no filme. Através desse dado (que não é exposto apenas uma vez, onde chegamos a ver a personagem em set), se situa em zona de ambiguidade toda sua trajetória, que interpretaria – ou não – suas passagens, super expondo seus sentimentos, imbuindo-se de uma verdade que pode ser forjada, criando uma camada ainda mais possante ao filme.
Seu autor quis dar contornos dramáticos e dúbios a uma participação considerada vitimizante dentro do espectro do pós-guerra em seu próprio país. Uma culpa inequívoca se abate sobre a personagem, talvez ainda superior ao amor que dizia sentir. E como podemos garantir que esses fantasmas não a arrastaram até onde foi parar, com essa nova paixão conferindo algum tipo de libertação e auto perdão? Em seu período mais inquieto, Resnais escolhe mexer em (ou criar) um vespeiro ainda recentíssimo, e com seu tratado romântico tem consciência de um possível estado retaliativo em torno de seus compatriotas, realçando sentimentos que provavelmente só ele gostaria de revisitar.
A forma como filma essa miríade de desconstruções, sejam elas verbais, emocionais ou históricas, dão a Alain Resnais a estatura que nem se arriscava a já conquistar no lançamento de Hiroshima, Mon Amour. O que não impede de já ter deixado claro como conseguiria se entrosar com facilidade entre diálogos que trariam uma dose de reflexão sem jamais resvalar na complexidade rebuscada. Aqui, o autor ainda exerce esse teor revisionista ao reler um período de dor com os olhos já apaziguados por 14 anos passados, acerca do fim do que um conflito bélico trouxe à Europa. O resultado é uma obra tão reluzente sob qualquer ponto de luz que se aventure focar, dos mais obscuros até os mais evidentes.
Um grande momento
O close na dor da lembrança de Riva