Crítica | Festival

Homens que Jogam

(Playing Men, SLO/CRO, 2017)
Documentário
Direção: Matjaž Ivanišin
Roteiro: Matjaž Ivanišin
Duração: 60 min.
Nota: 7 ★★★★★★★☆☆☆

A potência de Homens que Jogam está nas muitas possibilidades que deixa e nos muitos caminhos que, de maneira simples, trilha. Um filme que pode falar de um povo de forma específica, mas transcende para toda a humanidade aquilo que retrata. Algo que oscila entre demonstração da masculinidade, competitividade e, passando pela manutenção do poder, chega à determinação de grupos. Mais, que retrata o modo como a tradição popular pode ser afetada pela cultura da classe dominante, numa valorização elitizada que remete à Idade Moderna.

Logo em seu começo explora uma das disputas mais tradicionais da História, a luta turca yağlı güreş. Após uma pesagem, vários homens e meninos entram em um gramado e, com os corpos besuntados de azeite, lutam simultaneamente para definir aquele que é o mais forte, estratégico e resistente. Algo que remete aos primórdios de qualquer luta, tanto em seu contato físico como em sua relação com a derrota, e que traz à tela a força da tradição.

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A mesma tradição pode ser encontrada no Jogo do Maiorchino, onde uma espécie de queijo pecorino é amarrado e solto pelas ruas da comuna de Novara, na Sicília. Porém, enquanto a luta do azeite não é apresentada, há aqui uma apresentação inusitada, feita por um padre nigeriano. Numa determinação de cultura tão arraigada ao local que deve ser aceita e adaptada por aqueles que nele estão. Tanto a narração do padre quanto as histórias de um habitante local remetem à necessidade dessas tradições, passando também por sua agregação.

Seguindo em sua descoberta de brincadeiras tradicionais, Matjaž Ivanišin chega à Croácia com o jogo Šijavica, conhecido na Itália como Morra, apresentado por um competidor veterano que defende as qualidades do jogo. O passeio pelas jogadas rápidas leva das mesas de disputa formadas por idosos e adultos a brincadeiras de jovens nas ruas, marcando novamente a manutenção, aqui entre gerações. Algo que não aconteceu com o jogo do arremesso de pedras. Vivo apenas como lembrança, onde um senhor sozinho canta que este foi um jogo que caiu no esquecimento. O diretor aponta então a primeira ruptura e, expondo a possibilidade de apagamento histórico, pela primeira vez expõe a finitude daquilo que é popular.

O baque documental se percebe em seguida. Enquanto homens de uma província dançam sua dança típica, unindo jovens e velhos, seja no prazer de assistir à exibição, seja no tocar dos instrumentos, algo se perde no caminho que o diretor buscava trilhar. Ele está em crise, não sabe mais como terminar aquele projeto que começara. O não ter o que fazer está na figura do diretor e nas imagens de outros homens que olham para o nada e nada fazem além de esperar o tempo. É como se o filme encontrasse a personificação de uma versão moderna do desencantamento do mundo.

Imagens de Šijavica voltam ocupando um lugar de memória, como se estivessem naquele patamar de clímax que justificou o filme ou fez com que ele se perdesse; como a tristeza de se buscar pela tradição popular que, mais frágil, pode ser esquecida, deixar de existir. A coragem de encarar e expor a quebra na construção causa um estranhamento, mas faz com que inconscientemente se busque tudo o que está por trás da obra. Num exercício de afastamento e aproximação inesperado e muito eficaz.

Homens que Jogam é um filme masculino, que faz questão de excluir as mulheres de suas histórias, restringindo seu recorte. A casa de striptease deserta, o quarto do motel, o colchão de água e o brinquedo erótico levam o longa a um outro lugar, que poderia nada ter a ver com o resto do filme, e tornam ainda mais evidente a incômoda exclusão. A procura por aqueles espaços reclusos ou carnais, como tentativas de se encontrar e se sentir vivo diante de uma descoberta frustrante, recorre a uma ilustração machista, símbolo de uma tradição ainda mantida. Nesses ambientes protegidos da imposição universal, este machismo sobrevive junto a outra tradição que, embora tenha determinações sociais, não sofre abalos com a ruptura entre o popular e a elite: o sexo.

Busca-se então uma nova realidade com a bocha que, como retratada por Henri Matisse, joga-se completamente nu. Observa-se mais uma vez a tradição, como numa tentativa de voltar ao tema inicial, mas de maneira distanciada. Observam-se os jogadores, sem acompanhar o jogo em si, em um esporte que, diferente dos outros, ultrapassa as fronteiras regionais. Ainda assim, está mantido o descompasso, em uma cena quase voyeurística que se detém na aleatoriedade dos corpos sem muita função específica. Eis a imagem de uma nova quebra, uma nova frustração, que se concretiza na duplicação da imagem inicial, assumindo um recomeço. A constatação de que ter uma ideia não é o bastante, pois a vida não é uma ideia, e esse movimento pode levar a vários outros caminhos inusitados.

Ivanišin então parte definitivamente para um outro ponto, e encontra aqui, de maneira quase definitiva, esse rompimento com o regional, universalizando a tradição e constatando o quanto sentimentos relativos ao qualquer esporte ou jogo sobrevivem quando validados pela exposição, mesmo que não sejam jogados. O que se vê na tela une a outras características o orgulho patriótico, que, no conjunto, revela uma inconstância com a própria pátria. Repetem-se cenas de idolatria e comportamentos de manada, quando euforia e êxtase transformam-se perigo e raiva, em uma nova análise sobre o ser homem. Porém, por trás disso, o que se pode constatar é a velha ruptura entre o popular e o elitizado, quando aquilo que é praticado por poucos ocupa espaços e se sobrepõe ao que antes era praticado por todos.

Assim, Homens que Jogam faz um retrato interessante do antagonismo entre tradição e transformação na composição do ser social e do sentimento de povo. Mais do que isso, é uma representação muito palpável do que é a ruptura e o afastamento entre aquilo que mantém e define um povo e aquilo que tem o potencial de manter uma ordem social, mais universal, mas muito menos identificada e independente.

Um Grande Momento:
Os jovens jogando Šijavica.

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[7º Olhar de Cinema]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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