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Luiz Melodia: No Coração do Brasil

Um mestre redescoberto

(Luiz Melodia: No Coração do Brasil, BRA, 2024)
Nota  

Sem medo de cancelamento, vou assumir dois pecados gravíssimos, que são ao mesmo tempo um defeito grave meu e um elogio rasgado a um mestre. Lógico que eu conhecia as gravações de ‘Estácio, Holy Estácio’ e ‘Juventude Transviada’, de Luiz Melodia, músicas imortais na voz de um dos nossos maiores cantores. O que eu não sabia era que ambas eram composições de Melodia, e porquê eu não sabia? Simplesmente porque desde a minha primeira infância, quando provavelmente as ouvi pela primeira vez na voz do próprio, eu tinha certeza que Melodia tinha gravado dois clássicos imortais compostos, sei lá, 50 anos antes dele gravá-los. Luiz Melodia: No Coração do Brasil me consertou esses erros, e me fez perceber o óbvio: sim, são duas canções imortais, e sim, elas foram compostas não por Pixinguinha ou por Cartola, mas por alguém tão genial quanto. 

Quem me conhece sabe o quanto eu me emociono com facilidade, mas receber essas informações foi o que acionou os meus gatilhos desta vez. O choro aqui era por enxergar, enfim, a verdadeira dimensão de um homem que foi tudo o que eu já sabia e ainda mais. Nosso cinema tem tradição cada vez mais prolífica de nos trazer grandes personagens em documentários (que também são) musicais que muitas vezes o Brasil não assimilou por completo sua relevância, importância, grandiosidade ou valor; ou, isso tudo junto. Poderia citar um sem número de títulos, de Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei até Lô Borges: Tanta Água, mas Luiz Melodia: No Coração do Brasil sozinho é uma prova inconteste disso. 

Tudo começa no desejo de Alessandra Dorgan de oferecer mais Melodia a quem nunca teve acesso à totalidade de sua abrangência (vide eu mesmo), passa por um trabalho de pesquisa de imagens caprichado e cai no colo de Joaquim Castro (de Democracia em Vertigem e Máquina do Desejo), um montador que mostra aqui ainda mais suculência que no documentário sobre o Teatro Oficina. Juntos, são criados momentos de poesia, ora mais vibrantes e em momentos seguintes impossíveis de esconder a melancolia. Isso tudo acontece por obra e graça do próprio personagem, que fornece material suficiente para uma análise acertada sobre como o país não tem cultura, memória ou interesse pelo que fervilha. E Castro e Dorgan conseguem encontrar os momentos únicos onde cada assunto se comunica com o tempo seguinte, trazendo uma coesão que não é simples de alcançar.

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Junto de seu próprio corpo, Luiz Melodia: No Coração do Brasil revela suas contradições quando não aceita a versatilidade de um homem que escolheu não ser rotulado. Porque deveria ser visto como isso ou aquilo, é um questionamento que acompanhou Melodia em sua vida, tanto que essas questões cortam todo o material, mostrando que não se tratava de uma insistência vazia, mas de uma profunda vontade de compreender o que era de fato incompreensível. Ao não se conformar com o samba e flertar com tudo que podia (e ele podia tudo), Melodia ousou ter voz e usá-la, o que talvez tenha definido sua condição boba de ‘maldito’, como ficou marcado, apesar de sua doçura inconfundível. Enquanto homem negro, o interesse da indústria era impedir sua liberdade, que ele nunca abriu mão. 

Mas uma questão afligia Melodia, e o filme mostra essa nova prova de uma condição de subserviência inconsciente que a sociedade impunha. O sucesso arrebatador era algo para o qual ele não tinha se preparado e que chegou justamente com ‘Juventude Transviada’, e qual não foi a surpresa de todos quando ele abre mão disso e se refugia por dois anos em Salvador. Pessoas como ele ouviram ao longo da vida que não mereciam tais distinções, e assim o homem negro se anula até quando representa algo gigante – o êxito descontrolado. Mesmo assim, é através da afirmação de seu corpo preto e da sua ferocidade coletiva, que se conecta ao talento irrestrito (até ator Melodia foi, em Casa de Areia), que ele consegue ir muito além do que sonhava ou era permitido. 

Que ele enfim tenha gravado sambas (quando bem quis, fique claro) e tenha dobrado sua própria opinião, para mais uma vez ter a palavra final, é uma amostragem de um tipo tão palpável e cheio de camadas, da qual Luiz Melodia: No Coração do Brasil apenas arranhe. Porque o verdadeiro Melodia, é aquele que vemos nas imagens e nas falas; andando pelo Estácio, na abertura do filme pedindo para que cantassem com ele – ou ao menos dançassem, não entendendo porque as coisas aconteciam daquele jeito, mas seguindo na sua. Um homem que talvez tenha nascido clássico, e por isso compôs ao menos dois, tão imensos que o fez acompanhar mestres. Ou seja, tava tudo em casa mesmo. 

Um grande momento

Todos querem saber porque Melodia não grava – e ele tenta responder

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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