Crítica | Festival

Identidade

A pessoa errada

(Passing, EUA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Rebecca Hall
  • Roteiro: Rebecca Hall
  • Elenco: Tessa Thompson, Ruth Negga, André Holland, Gbenga Akinnagbe, Derek Roberts, Antoinette Crowe-Legacy, Bill Camp, Alexander Skarsgård
  • Duração: 98 minutos

Imaginem eu, uma crítica de cinema branca, loira, do alto de todos os meus privilégios resolver destrinchar as complicadas questões do colorismo e explicitar o quê e como ele pode influenciar a vida por ser filha de uma mulher negra? Complicado, não? Pois foi justamente isso que a atriz Rebecca Hall, conhecida por seus papéis em Vicky Cristina Barcelona e Christine, resolveu fazer em sua estreia na direção. Identidade (Passing) é a adaptação do clássico romance homônimo, de Nella Larsen, e conta a história de Irene e Clare, duas mulheres negras de peles claras que podem “se passar por brancas”. Enquanto a primeira se orgulha da negritude e faz questão de celebrar a cultura afro-americana, a segunda manteve sua ancestralidade em segredo e casou-se com um racista. De volta aos Estados Unidos dos anos 1920, o filme traz a questão identitária e faz um retrato da sociedade daquela época, mas que não deixa de ser atual quando se trata de questões raciais.

O filme, fotografado por Eduard Grau, de Direito de Amar, é elegante em sua composição e tem vários momentos inspirados, principalmente quando trabalha com quadros mais fechados ou manipula o foco, mas é igualmente problemático quando força o estouro da luz para embranquecer suas personagens principais e “adequá-las” às do livro, como acontece na primeira sequência, que revela a Irene de Tessa Thompson. O uso do pb, aliás, embora útil para a adequação de época, usado tão aberto assim – e parece que como uma espécie de jogo de significado de palavras – é de mau gosto. A cada novo deslize é preciso fazer um movimento de distanciamento para tentar se reconectar à história do longa.

Identidade (Passing, 2021)
Netflix © 2021

Com um certo desequilíbrio no roteiro, os personagens são bem desenvolvidos e a trama, bem estabelecida. Ao lado de Thompson, que recentemente esteve em A Vida de Sylvie, está Ruth Negga, indicada ao Oscar por Loving: Uma História de Amor. Ambas mergulham completamente nos papéis e conseguem entregar os conflitos das duas mulheres que veem suas vidas e certezas serem transformadas pelo reencontro. O elenco coadjuvante, com destaque para André Holland como o marido de Irene, também faz um trabalho competente e isso é algo que ajuda bastante no andamento de Identidade. Neste ponto, Hall demonstra habilidade e controle.

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Quando a função vai além daquela que conhece melhor, porém, há aquela confusão bastante comum em novos cineastas: achar que quem tem referências tem tudo. Hall realmente parece ter uma sensibilidade na concepção e, sem dúvida, prestou muita atenção naquilo que andou vendo. Identidade mistura referências de cineastas com quem a atriz trabalhou a outras que, sem dúvida, moldaram a sua cinefilia. É possível reconhecer Woody Allen nos retornos ao Hallem ao som de jazz, assim como é possível ver Hitchcock no clímax, e, do mesmo jeito, outras homenagens e alusões estão salpicadas ao longo do filme. A grande questão é que não basta pegar tudo que se acha interessante e jogar na tela, é preciso que haja um sentido e uma lógica por trás das escolhas. Isso falta aqui.

Identidade (Passing, 2021)
Netflix © 2021

Assim, com uma história incrível e um ótimo elenco, Identidade é uma estreia atrapalhada que vai tentando se equilibrar como pode entre os erros e acertos, o que compromete o ritmo e o envolvimento, que já vinha encontrando problemas desde o início do filme. Tem bons momentos, mas eles não conseguem se sobrepor e, para complicar ainda mais as coisas, tem o contexto. É um tema fundamental, a história de Nella Larsen é realmente um marco na ficção sobre o colorismo que merecia um filme e é óbvio que todos podem contar todas as histórias que quiserem, mas há outras questões que devem ser observadas.

Quando há todo um movimento de fazer com que as pessoas contem suas próprias histórias, era mesmo o momento de alguém que passou a vida tendo todos privilégios e portas abertas contar uma história que não é sua? O fato de ter uma ancestralidade, que por muitos anos foi incerta, inclusive, é uma justificativa? Não é a mesma coisa, mas me lembra situações como uma vez em que eu estava em uma mesa de bar e uma das pessoas falou: “eu queria muito ser negra, até fiz o teste de etnia, mas só sou 3% negra”. E assim seguimos na nossa ignorância branca.

Um grande momento
A última festa

[Sundance Film Festival 2021]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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