Crítica | Catálogo

Il Buco

A natureza do olhar

(Il buco, ITA, FRA, ALE, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Michelangelo Frammartino
  • Roteiro: Michelangelo Frammartino, Giovanna Giuliani
  • Elenco: Nicola Lanza, Antonio Lanza, Claudia Candusso, Paolo Cossi, Mila Costi, Carlos José Crespo, Jacopo Elia, Federico Gregoretti, Leonardo Larocca, Enrico Troisi
  • Duração: 93 minutos

O pensamento mais forte e imediato ao novo longa de Michelangelo Frammartino é o que nos remete ao mito da caverna de Platão. O filósofo grego criou um exercício imaginativo para correlacionar a ignorância dos que não conhecem a um mundo restrito, que acreditam em sombras forjadas e têm medo de encarar a luz. Em Il Buco, o conhecimento faz o caminho oposto e adentra as cavernas; é lá que está guardado não apenas a luz, mas também a beleza e a elegia que estão em extinção aqui fora. O cineasta italiano se aproxima de uma história real acontecida há 60 anos atrás, para não apenas revelar o cume mais interno no planeta, como também resgatar o que não se encontra mais no que os olhos veem. Em um mundo de inadequação absoluta, as respostas a um bucólico que está se esvaindo não mais estão no exterior. 

Esse cinema de fluxo a que se dedica Frammartino tem muita investigação também, que não está sugerida no que a narrativa apresenta, mas em suas entrelinhas. Ao paralelizar a chegada à vila dos profissionais que farão a descida às cavernas com a da existência de um velho pastor da região, o filme convoca novos formatos de “princípio” e “fim”, sem conjecturas fáceis. Esses dois segmentos não chegam a se encontrar exatamente no campo geográfico, mas suas linhas são traçadas em conjunto, a admiração pelo novo mundo ainda a ser descoberto e a despedida a um espaço que sempre esteve ali. Dos subterrâneos, nasce uma forma de vida onde cabe a contemplação; no exterior, esse olhar ao minimalismo está se esvaindo lentamente, sem substitutos. 

Il Buco
Cortesia Festa do Cinema Italiano

Um plano marca a primeira meia hora de Il Buco. Esses escavadores chegam na comunidade e precisam passar uma noite de descanso antes de descer para o infinito profundo. Eles são abrigados em uma espécie de depósito religioso, e em determinado momento, são registrados em sono profundo ao lado de imagens sacras, incluindo um Jesus crucificado deitado entre eles. Como se fossem previamente abençoados para explorar o que o pai do Messias construiu, esse grupo é autorizado a ocupar o espaço que o Homem não alcançou anteriormente. Essa investigação visual muito provocadora e subjetiva é colocada em cena a todo momento, onde novos olhares e novos acessos darão ao título análises cada vez mais impressionistas acerca de uma obra aberta ao olhar. 

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Essa é a formação de sua própria confecção, modificar nossa relação com o que testemunhamos, indo a um caminho de compreensão que não é estanque. O velho pastor e o grupo de exploradores têm esse mesmo fascínio diante do que os cerca: investigar a superfície para chegar até a transcendência das sensações. Corpos não estão imóveis ao olhar, assim como também não estão as coisas. A cada novo ponto de foco, seu caráter analítico, seja ele trabalhado de maneira proposital ou não, vai criando novas texturas ao que existe, ao que é visível. A partir dessa ciência, o que o espectador observa é como essas duas formas de olhar estão em caminhos opostos, uma em direção às maravilhas de ressignificação do espaço descoberto, e outra em processo de saturação do que já foi apreendido. E agora nos resta apreender essas percepções antagônicas. 

Il Buco
Cortesia Festa do Cinema Italiano

Somos regidos por esses dois movimentos intrafílmicos, e um extrafílmico acontece longe dali, o da construção de um arranha-céu no polo oposto italiano, o maior da época, que vai representar tudo que de moderno o país poderia propiciar ao mundo nos anos 60. Também esse movimento é uma tentativa de capturar o olhar humano, mas sua natureza pendente à grandiloquência tende a acessar apenas a História – e Frammartino se interessa pela história. Enquanto todos acessam a ilusão de um progresso fantasioso, o autor mergulha na sua obsessão “platônica”, a de mostrar uma verdade que não está nas sombras da caverna. A realidade a que Il Buco se interessa é a do caminho inverso, a do mergulho nas coisas menores e escondidas, cuja semelhança com o introspectivo é perceptível. O velho pastor não tem acesso ao novo escondido, mas sua sensibilidade já capturou o que já não é mais observado, a vida comum e prosaica ao seu redor, anti-faraônica. 

São muitos registros de captação do que está sendo dito em Il Buco, e junto a essa subjetividade, também caminham esses projetos de decodificação coletivos. Ainda que as ferramentas que o filme fornece estejam mais próximas a essa característica libertária que esse cinema sugere, o que está sendo descoberto é de igual relevância ao que é apenas sentido. Como um choque dentro da narrativa tradicional, Frammartino não deixa de comunicar e debater, que outros cineastas mastigariam para o público. Aqui, a atmosfera e a ambiência contribuem para que o espetáculo humano, de nunca perder o maravilhamento pela vida e pelo divino, se façam minimamente sedutoras, e ainda comunicativas. 

Um grande momento
Jogando bola

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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