Crítica | Outras metragens

Inabitável

(Inabitável, BRA, 2020)

  • Gênero: Ficção
  • Direção: Enock Carvalho, Matheus Farias
  • Roteiro: Enock Carvalho, Matheus Farias
  • Elenco: Laís Vieira, Val Júnior, Eduarda Lemos, Luciana Souza, Sophia Williams, Erlene Melo
  • Duração: 20 minutos
  • Nota:

O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Segundo pesquisa da Gênero e Número a partir de dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), até o ano de 2017, 11 trans eram agredidos por dia. É assustador, ainda mais quando pensamos no que foi legitimado com o governo Bolsonaro. Essa realidade é o que está por trás do curta-metragem Inabitável, de Enock Carvalho e Matheus Farias, que começa com a busca de uma mãe por sua filha que não voltou para casa depois de uma festa.

Os diretores criam uma fábula transafrofuturista para marcar uma jornada determinada pelo medo e pelo o espaço negado a esses corpos, que se reinventam e ocupam aquilo que lhes é negado. Há muita habilidade na construção da tensão, seja em olhares perdidos ao receber a notícia do desaparecimento ou no julgamento que sofrem na delegacia. A câmera acompanha e se demora em cada um desses personagens para que suas angústias tomem forma, toda a atmosfera é construída com a ajuda do além da tela, o pavor é reconhecido sem que a violência física seja explícita. É um trabalho complexo, mas preciso.

Luciana Souza em Inabitável

A dupla é hábil na escolha do que mostra e do que não quer mostrar. Porém, Inabitável não é tão preciso na condução dos atores. Indo além de Luciana Souza e da criação da mãe que traz em si a angústia e aquela mescla de esperança e consciência que é só dela, se alguns entregam o tom exato, como é o caso de Sophia William, falta uma direção mais precisa para outros. O roteiro também não favorece muito o trabalho daqueles que são coadjuvantes, algumas vezes sem motivo para estar em cena.

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Mas isso se ameniza com o mergulho do filme em seu lado futurista, com a criação da “possibilidade” de mudar essa história, com o alcançar de uma utopia que se quer real, um lugar onde todos podem ser quem são, sem julgamentos, sem preconceito, sem morte. E não haveria melhor meio do que uma narrativa fantástica, seara bem conhecida pelos diretores de Caranguejo Rei, para tocar na ferida, ainda completamente aberta.

Luciana Souza e Sophia William em Inabitável

Arriscado, Inabitável chega com uma roupa simples mas é extremamente elaborado em sua construção, consciente do lugar onde pode chegar quando entrega a quem assiste ao filme a possibilidade de enxergar na tela aquilo que ele tem certeza que acontece, mesmo que isso não se mostre. É uma criação quase conjunta – realizador e espectador – de um pânico real e que, infelizmente, não está nem perto de acabar, ainda mais no contexto atual, nesse Brasil de hoje.

Com seu final aberto, seu objeto iluminado e a grande metáfora da luz pode ser o prenúncio de uma mudança, o caminho para uma nova realidade, o lampejo literal de uma esperança. Mas, como a realidade entranhada no filme, há camadas e nessas camadas, a compreensão da terrível mensagem.

Um grande momento
Na delegacia.

[31º Curta Kinoforum]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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