(Inabitável, BRA, 2020)
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Segundo pesquisa da Gênero e Número a partir de dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), até o ano de 2017, 11 trans eram agredidos por dia. É assustador, ainda mais quando pensamos no que foi legitimado com o governo Bolsonaro. Essa realidade é o que está por trás do curta-metragem Inabitável, de Enock Carvalho e Matheus Farias, que começa com a busca de uma mãe por sua filha que não voltou para casa depois de uma festa.
Os diretores criam uma fábula transafrofuturista para marcar uma jornada determinada pelo medo e pelo o espaço negado a esses corpos, que se reinventam e ocupam aquilo que lhes é negado. Há muita habilidade na construção da tensão, seja em olhares perdidos ao receber a notícia do desaparecimento ou no julgamento que sofrem na delegacia. A câmera acompanha e se demora em cada um desses personagens para que suas angústias tomem forma, toda a atmosfera é construída com a ajuda do além da tela, o pavor é reconhecido sem que a violência física seja explícita. É um trabalho complexo, mas preciso.
A dupla é hábil na escolha do que mostra e do que não quer mostrar. Porém, Inabitável não é tão preciso na condução dos atores. Indo além de Luciana Souza e da criação da mãe que traz em si a angústia e aquela mescla de esperança e consciência que é só dela, se alguns entregam o tom exato, como é o caso de Sophia William, falta uma direção mais precisa para outros. O roteiro também não favorece muito o trabalho daqueles que são coadjuvantes, algumas vezes sem motivo para estar em cena.
Mas isso se ameniza com o mergulho do filme em seu lado futurista, com a criação da “possibilidade” de mudar essa história, com o alcançar de uma utopia que se quer real, um lugar onde todos podem ser quem são, sem julgamentos, sem preconceito, sem morte. E não haveria melhor meio do que uma narrativa fantástica, seara bem conhecida pelos diretores de Caranguejo Rei, para tocar na ferida, ainda completamente aberta.
Arriscado, Inabitável chega com uma roupa simples mas é extremamente elaborado em sua construção, consciente do lugar onde pode chegar quando entrega a quem assiste ao filme a possibilidade de enxergar na tela aquilo que ele tem certeza que acontece, mesmo que isso não se mostre. É uma criação quase conjunta – realizador e espectador – de um pânico real e que, infelizmente, não está nem perto de acabar, ainda mais no contexto atual, nesse Brasil de hoje.
Com seu final aberto, seu objeto iluminado e a grande metáfora da luz pode ser o prenúncio de uma mudança, o caminho para uma nova realidade, o lampejo literal de uma esperança. Mas, como a realidade entranhada no filme, há camadas e nessas camadas, a compreensão da terrível mensagem.
Um grande momento
Na delegacia.