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Um Inverno em Nova York

Gosto pela desgraça

(The Kindness of Strangers , DNK, CAN, SWE, FRA, ALE, GBR, EUA, 2019)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Lone Scherfig
  • Roteiro: Lone Scherfig
  • Elenco: Zoe Kazan, Esben Smed, Jack Fulton, Finlay Wojtak-Hissong, Andrea Riseborough, David MacLeanTahar Rahim, Jay Baruchel, Bill Nighy, Nicolaj Kopernikus, Kola Krauze
  • Duração: 112 minutos

O tempo passa, pessoas mudam, mas o ser humano continua nutrindo especial apreço por histórias recheadas de desgraça. Numa narrativa em mosaico, Um Inverno em Nova York é um desses filmes que aposta pesadamente na desgraça humana, em pessoas que têm suas vidas recheadas de tragédias para que encontrem pequenos acalantos na bondade daqueles poucos também destroçados que cruzam seus caminhos. Vem daí o nome original The Kindness of Strangers, em português, a bondade de estranhos. Dirigido e roteirizado por uma Lone Scherfig mais perdida que em seus trabalhos anteriores, como Educação e Italiano para Principiantes, o longa é pesado, carregado e desequilibrado em tudo aquilo que decide abordar.

São quatro as histórias que se cruzam na gelada Nova York: Clara (Zoe Kazan, de Doentes de Amor), que fugiu do marido violento com os seus dois filhos pequenos sem nenhum dinheiro; Jeff (Caleb Landry Jones, de Três Anúncios para um Crime), um jovem adulto deslocado que não consegue se adaptar a nenhum tipo de emprego; Marc (Tahar Rahim, de O Profeta), um homem solitário que tenta reconstruir o seu presente depois de problemas do passado violento, e Alice (Andrea Riseborough, de Here Before), aquela que serve como elo de ligação entre todas as histórias e divide o seu tempo ajudando as pessoas, ora como enfermeira, ora como fazendo caridade coordenando grupo de apoio, organizando coral da igreja ou distribuindo comida aos sem-teto.

Inverno em Nova York

Um Inverno em Nova York não se dispõe a estabelecer relações para além da desgraça ou do desgosto. Todos os acontecimentos são resultado em situações extremas de aflição, angústia ou até mesmo tragédia. Com o presente e passado tão contaminados é difícil projetar qualquer futuro, por mais que o filme tente visionar algo em direção a isso. A contaminação que Scherfig deixou pelo caminho é tanta que o encontro com o bons momentos e soluções deixa de ser esperado, o espectador vai se esgotando pelo caminho. A trama de Clara e seus filhos, de maior tempo de tela, vai se emaranhado de tal maneira que, não fosse pela conhecida sucessão de aflições e desgraças, chegaria sozinha ao ponto de despersonalizar o filme, com passagens aleatórias que tentam solucionar o insolucionável.

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Em meio a tanto peso, comoção e infortúnio, está um elenco de qualidade que tenta criar algo com aquilo que tem nas mãos. Alguns até conseguem aquilo que costumamos chamar de cenas de Oscar, mas são momentos. Kazan consegue uma maior estabilidade na atuação, principalmente por ter a única personagem que segue uma lógica emocional e tem tempo para mergulhar em sentimentos mais elaborados. Riseborough faz o que pode, mas está desperdiçada em uma figura que parece resultar da união de umas três quando se pensa em desenvolvimento de persona.

Inverno em Nova York

A trama confusa, porém, vem em quadros inspirados do dinamarquês Sebastian Blenkov, que consegue criar a relação da cidade, em suas luzes, espaços e velocidade, com os personagens. Em um filme tão errático, ele individualiza os ambientes e personaliza as imagens, criando elementos visuais específicos para cada um dos trilhos da história. Não que consiga resistir até o final, pois o próprio roteiro, como em outros filmes-mosaicos, não sabe como trabalhar a ligação de suas linhas díspares e nem dar seguimento a algo que é muito maior do que os sofrimentos até então vistos.

O clímax de Scherfig é vinculado a um elemento alienígena à trama de conexão, embora sua existência/ausência sempre tenha sido importante. Quando a diretora o expõe e resolve, de maneira didática, explicar o porquê de tudo e reafirma graficamente as motivações de Clara, ela rompe com aquilo que tinha criado com o espectador até ali. Um Inverno em Nova York perde suas características e se torna um outro tipo de filme, em estética, ritmo, comportamento, se mantém algo é o fato de continuar sendo mal amarrado e pouco profundo.

Inverno em Nova York

E assim Um Inverno em Nova York se sustenta nesse apego masoquista ao que causa piedade em quem o assiste, como os filmes irmãos mais famosos Crash: No Limite ou Babel. Aquele incômodo retrato da tragédia pela tragédia, que está sempre em busca de um choque para tornar-se mais impressionante e justificar a existência da gentileza e da caridade. Uma relação bem problemática, para dizer o mínimo.

Um grande momento
Parente da noiva.

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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