- Gênero: Documentário
- Direção: Gregory Monro
- Roteiro: Gregory Monro
- Duração: 73 minutos
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“Me desculpe Dave, mas receio que não posso fazer isso”
Essa famosa frase expressa o sentimento de inoperância, a revolta de Hal 9000 contra os homens em 2001: Uma Odisseia no Espaço. E talvez a mesma sensação perpasse o espírito de um ou outro espectador após assistir a esse documentário, Kubrick por Kubrick. Pois não é simples nem fácil criar milagres e falar sobre os filmes ou o processo de um dos mais engenhosos autores do cinema. É uma tarefa no mínimo ingrata.
Muitos já tentaram, seja em documentários, homenagens veladas em filmes ficcionais ou exposições como aquela memorável “Kubrick 90 anos” que trouxe mais de 500 itens entre objetos, câmeras, itens de acervo, documentos de filmagem e fotografias. Na criação de imagens estáticas e ensaios para a revista “Look” é que a jornada do cineasta norte-americano se inicia e a potência da imagem na formatação da ideia que os colaboradores, familiares e outros tinham dele, está no cerne do documentário de 2001 Stanley Kubrick: a life in pictures, de Jan Harlan. Logo utilizar imagens de arquivo de sets de seus filmes mais famosos, trechos de filmes caseiros, fotografias, entrevistas pré-gravadas com colaboradores não é de forma alguma uma nova abordagem certo?
Não exatamente, mas ainda assim vale a assistida. O que o cineasta Gregory Monro faz aqui é evocar mais do que as imagens, signos e cenas que remetam a Kubrick, mas sintagmas materializados em inúmeras gravações da voz dele contando sobre alguns de seus filmes e a maneira como faz cinema para o crítico francês Michel Ciment. Longe de ser tão ousado na construção estilística a partir desse dispositivo como Listen to me Marlon (2015), onde o astro Marlon Brando narra sua história, Kubrick Por Kubrick acaba sendo um belo documentário televisivo ainda que dotado de uma gramática audiovisual voluptuosa, como na construção da mis-en-scène onde os trechos das entrevistas de Ciment com Kubrick atravessam o cômodo e preenchem as paredes – o lugar em si é uma reprodução do quarto do monolito negro, onde se veem dispostos no cenário os óculos vermelhos de Lolita, o capacete escrito Nascido para Matar do soldado hippie Joker, a cadeira de rodas do Doutor Strangelove, a máquina de escrever de “Jack a dull boy” ou a máscara veneziana de inspiração futurista dos droguies. São os objetos que dão a ambiência para o mergulho em sequências do filme, mas especialmente na maneira com que Kubrick ia pincelando sua imaginação.
Um acerto é jogar por terra as concepções de que ele era um gênio obsessivo, que elaborava filmes difíceis e profundos. Perfeccionista sim, rótulo que ele nunca negou e que poderia ser sintetizado em duas paixões: pelo xadrez e pela fotografia. Como explica Ciment no documentário, do primeiro ele traz a ordenação mental importante para definir a estrutura da história, o rigor matemático dos enredos e do segundo, o domínio técnico sobre luz, enquadramento e profundidade para o ofício de diretor.
Se ao longo de quatro décadas de carreira cinematográfica que resultaram num legado de 16 filmes, em sua maioria obra primas, Kubrick sempre se esquivou de falar sobre os mesmos por considerar que “quando um artista declara suas intenções, a arte perde aquilo que tem de mais singular que é o poder da imaginação e da sugestão”, pra que fazer um filme com ele falando sem explorar esse potencial ao máximo? Se restringindo a ser uma tradução literal de um livro, ainda que seminal, de entrevistas? Não aproveitando para se debruçar sobre as dores e as delícias que ele enxergava em sempre partir de um material pré-existente para formular seus filmes mais inesquecíveis? Para o próprio Ciment, o caminho foi não buscar comentários sobre cada criação fílmica (respeitando o desejo do cineasta em preservar uma parte de mistério e de indeterminação) mas sim um atalho até o coração do autor, transmitindo-lhe confiança para que a si pudesse confidenciar coisas como:
Pensar na concepção visual de uma cena ao nível da decupagem pode ser uma armadilha, uma camisa de força então acho mais vantajoso procurar os elementos mais importantes e verdadeiros de sustentar aquela cena.
Numa história de ficção tem que haver um conflito. Se não há um problema, dificilmente existirá uma história por definição.
Uma boa história que se transforma em um bom filme é praticamente um milagre e criar milagres não é algo fácil
Dirigir um filme, tentar fazê-lo da forma correta nem sempre é pura diversão.
Essas frases foram retiradas em sua literalidade do livro, lançado pela Cosac Naif no Brasil em 2018, para ilustrar o filme – o que é uma pena.
Dificilmente seria possível dar conta da dimensão dantesca da influência de Kubrick e incluir em pouco mais de 1 hora de duração todos os meandros da filmografia dele. É compreensível. A questão aqui é tão somente que o recorte talvez necessário a esse documentário fosse mergulhar na mente kubrickiana para extrair momentos de profunda reflexão sobre o fazer cinematográfico, como quando ele insiste em utilizar as luzes de vela e panorâmicas em Barry Lyndon explicitando a derrocada moral de um homem belo e ordinário – que a aquela altura só poderia ter sido interpretado pelo galã Ryan O’Neal, ou quando Tom Cruise comenta a complexidade que era ensaiar o script de De Olhos Bem Fechados partindo do pressuposto que a obra no qual se baseava, “Traumnovelle“, trata de “alucinações conscientes” do personagem principal mas que em nenhum momento Kubrick pensava em um filme surrealista mas sim, barroco.
Os momentos são infelizmente exíguos, pois o caminho visitado em Kubrick por Kubrick repisa os filmes mais presentes na memória audiovisual mesmo que, nas palavras de Scorsese no prefácio do livro, Kubrick tenha sido um dos únicos mestres de cinema modernos também por viver a sina dos verdadeiros visionários que não tomam caminhos repisados.
Um grande momento
O asséptico quarto do monolito negro repleto de espólios kubrickianos