- Gênero: Terror
- Direção: James Wan
- Roteiro: Ingrid Bisu, James Wan, Akela Cooper
- Elenco: Annabelle Wallis, Maddie Hasson, George Young, Michole Briana White, Jean Louisa Kelly, Susanna Thompson, Jake Abel, Jacqueline McKenzie, Christian Clemenson, Amir AboulEla
- Duração: 111 minutos
-
Veja online:
Dá pra dizer que James Wan celebra mais do que sua trajetória ao olhar para as referências que o acompanharam, em Maligno, estreia de hoje nos cinemas. Antes de adquirir vida própria, Wan nos apresenta um compêndio do que é/foi o cinema terror nas últimas quatro ou cinco décadas, em pinceladas tão fortes quanto pontuais. Saberemos ao longo da exibição que há um projeto maior que encapsule a autoralidade que o gênero não vê com frequência. Ao lado de Mike Flanagan, o cineasta não apenas homenageia o horror como o reverencia com elegância, e talvez aqui esteja pronto para transcende-lo ao tomar sua própria expressão base para dar uma roupagem particular a muito do que viu na infância, aprimorando sua estética para uma clara evolução.
Como se fora dividido em duas partes, Wan utiliza um conceito onde o passado complementa o presente e vice versa, dando a senha narrativa para que a sua própria história com o gênero seja repaginada. Na fatia inicial, um jogo de adivinhação é feito com o espectador, e Maligno empilha um manancial de referências estético-narrativas para celebrar sua própria infância. Dos filmes da Hammer com estudos científicos em sanatórios de tortura, indo até a Nova Hollywood que Friedkin e a série de filmes sobre Amityville nos trouxe das mansões assombradas, passando pelas mãos do Larry Cohen de Nasce um Monstro até resvalar nos giallos tradicionalmente italianos, a salada não é desordenada, embora no papel isso soe amontoado.
O argumento de sua autoria nas companhias de Akela Cooper e Ingrid Bisu (também atriz do filme) — e Cooper desenvolvendo sozinha a estrutura — consiste em uma régua temporal pela história de Madison, jovem mulher que foi adotada aos 8 anos e precisa recobrar a infância enevoada de traumas adormecidos. Iniciado em 1993 e com um preâmbulo apresentado posteriormente em 1985, Wan com isso justifica não apenas seu passeio pelos formatos do gênero como também amarra sua trajetória desde o logo da Warner na estática de uma gravação de TV antiga; é o seu mergulho ambicioso e desigual em uma atmosfera que ele defende muito bem, mas que aqui alcança um status de autor. Essa argamassa não é proveniente tão somente pelo DNA que mistura a infância da protagonista com a sua própria, mas pelo requinte com que o filme expõe seu material imagético, que vai muito além de um processo referencial pessoal.
Na segunda metade da projeção, apresentado o quebra-cabeças do roteiro e com o jogo intencional margeando os códigos do horror, o criador do universo Invocação do Mal dá uma rasteira no espectador, que (caso seja experimentado) percebe de imediato que “a hora do recreio terminou”, e tudo então passa independer do conteúdo, na verdade um simples vetor para a construção de um circo de maravilhas imagéticas. A partir do encontro do “herói” da produção, um detetive chamado Kekoa Shaw (sim, Kekoa!), com seu adversário, há um descolamento do que ainda resistia orgânico para o que é propositadamente alicerçado no artifício. Não há mais interesse em justificar narrativamente sua trajetória, é tudo uma grande epopeia de luzes, formas, escuridão e máscaras, feérico e belo, com uma veia punk e uma estratégia exclusivamente calcada no resultado, uma radical aposta nos fins justificando os meios.
Desse momento em diante, Wan estabelece uma regra implícita: não há regras, a não ser proporcionar o espetáculo. Dos subterrâneos de Seattle vem uma perseguição extasiante, da invasão de uma delegacia vem uma das mais encantadoras sequências de ação do ano, uma busca incessante pelo escapismo e pela emoção imediata, presente a partir do momento em que é revelado “o segredo do mágico”. Quando o roteiro abre seu livro em alto relevo e a revelação estapafúrdia enfim vêm, o diretor já nos arrebatou tão absolutamente que nos resta apenas tentar capturar a velocidade dos frames disparados na tela. Ele tem pressa para o encantamento, seu malabarismo de edição se encaminha para arrebatar — um trabalho brilhante de Kirk Morri.
Não se trata de uma aventura de imagens esfuziantes como Godzilla vs Kong, e nem cabia. O que está em cheque em Maligno é uma verdadeira “matrioska” — por dentro da mente do pequeno Wan sai uma parábola sobre o amor fraterno sombreado pela alegoria do terror que acompanhou o menino; de dentro desse estudo sai um filme que não se envergonha de suas capacidades hipnóticas através do arrebatamento causado pela diversão mais luxuosa e complexa que o talento é capaz de conceber; de dentro desse pacote requintado de blockbuster sai um filme que tem uma última camada a apresentar de reconfiguração material… e quem poderia imaginar que estaria diante de um poderoso grito de empoderamento feminino, dos mais efetivos e violentos recentes.
Com tantas possibilidades propostas e armadas em sua criação, ver esse jogo arriscado fazer sentido desde seu ponto de partida, se interligar minimamente para desenhar um caminho de coerência com algo a dizer, é tão mais do que um produto do gênero efetivamente o faz, que o plano final, caótico, mas verdadeiramente afetuoso em torno de um trio de mulheres literalmente renascidas, parece obedecer uma ordem única — a expressão de James Wan, a criança tornada diretor, completou seu castelo mais ambicioso. O homem que, hoje, promove uma iguaria tão texturizada sem disfarçar suas intenções de “pão e circo”, é também a criança que um dia saiu maravilhada de um picadeiro. Estamos todos exaustos ao fim de Maligno, e igualmente acreditando mais uma vez no poder do maravilhamento causado pela imagem.
Um grande momento
A descoberta de Gabriel