Crítica | Festival

Mambembe

A melhor limonada

(Mambembe, BRA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Fabio Meira
  • Roteiro: Fabio Meira, Susana Barriga
  • Elenco: Índia Morena, Madona Show, Dandara Ohana, Murilo Grossi, Fabio Meira
  • Duração: 96 minutos

Existem muitas maneiras de se contar uma história, mas uma forma que vem se popularizando é transformar em certo o que deu errado. Dentro do documentário, especificamente, esse recurso não apenas contempla muitas maneiras de contornar o incontornável, como vez por outra consegue amarrar algo que não teria salvação aparente, para costurar uma grande obra constituída do desastre. Como o recente Amanhã, de Marcos Pimentel, Mambembe contém o tanto de desespero intrínseco de quem acompanha um acidente irreversível, cuja costura não mostra apenas uma saída possível dentro do que poderia ser feito, como ressignifica uma obra dada como perdida – e assim, não apenas salva, como recauchutada em sua gênese. 

Fabio Meira dirigiu dois longas metragens antes de Mambembe, e em ambos ele se debruçava sobre conceitos de família com alguma dose de naturalismo – até que um rasgo adentrava a narrativa, permitindo o risco e a suspensão do realismo. As Duas Irenes tratava sobre um encontro familiar que não deveria ter acontecido por uma certa ordem tradicionalista das coisas; Tia Virgínia parte de uma festa igualmente tradicional, para desconstruir as aparentes normalidades de cada um, ou dos olhos de cada um. Em seu novo filme, Meira já parte do fim da certeza, do esquema que não apenas não se concretizou, como partiu toda a ideia de obra. Um filme construído a partir do que não funcionou, do erro esquecido e que agora pode ser reconstruído, sob nova encarnação. 

O que deveria ser uma narrativa ficcional acompanhando integrantes de circos pelo interior do país, com foco específico em três protagonistas femininas, dá lugar (em partes) a um documentário sobre a tentativa de realizar tal filme. O Mambembe original teve suas filmagens realizadas há 15 anos atrás, ou seja, seria na verdade o primeiro longa de Meira. Ao não revelar os motivos pelo qual seu projeto não foi concluído, e permitir-se criar um duo de situações fora do comum (a realidade da ficção e a ficção da realidade), o autor alcança uma textura que não é tão incomum assim, mas que ele organiza de maneira aí sim inédita. Porque, em tese, estamos diante de dois filmes em um; o que existe e está em tela, e o que não existe e será criado diante do espectador a partir do descaminho. 

Ao falar do circo, Meira mais uma vez rememora seu compromisso com os laços familiares que formam a base de sua obra até aqui, investigando a união entre seus personagens, e o que é questionado diante de tais modelos disfuncionais. O que o autor não previa era que estava também ele costurando uma nova família gestada pela arte, e que mesmo separada pelas circunstâncias, não reluta em reencontrar-se diante do imprevisível. Para as respostas que o tempo cobra de cada relação apresentada, Meira retorna ao ponto de origem para reencontrar pessoas que nunca conhecemos. Com isso, o cineasta constrói uma espécie de Cabra Marcado para Morrer muito particular, sobre a alma cigana com a qual somos imbuídos pela arte, tenha ela a moldura que tiver. 

Conseguir sair de uma dificuldade que se impôs durante uma produção primeira da carreira e igualmente conseguir desfazê-la ao longo de mais de uma década já seria uma tarefa hercúlea. O que Meira faz em Mambembe, reconfigurando um percurso de narrativa para criar uma segunda faixa de entendimento para a obra, situando dados ilusão à realidade e arroubos de realidade na dita ficção, é além de qualquer expectativa. Que ele consiga então emergir de uma pecha de fracasso pessoal diante de algo que poderia ter sido belo, para sagrar-se superior aos desfeitos e então fazer arte, é um tratamento excepcional e uma prova de que, muitas vezes, a melhor psicologia que podemos fazer a nós mesmos será provido por uma tentativa de desconstrução do próprio trabalho. 

Com um trabalho de montagem arrebatador dele, de Juliano Castro e de Affonso Uchôa (o homem por trás de Arábia), Mambembe também trata-se de uma obra mergulhada na família pelo tamanho do calor humano que Meira preenche acerca dos seus atores. Estejam no passado ou no presente, essa obra carrega uma dose de hibridismo que impressiona justamente por aproximar seu corpo de elenco até essa proposta-saída. Quando é espelhado os dois momentos da produção, a busca de Meira enfim parece cessar. Seja o que for, o que vemos hoje a respeito do que um dia foi Mambembe, é o que teríamos de ver; não à toa, a criatividade narrativa do autor foi utilizada como motor para encontrar um novo filme dentro de algo que tinha tentado ser, e esperou por 15 anos para então sê-lo. 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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