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Marinheiro das Montanhas

Nos resta a liberdade - de não ser um só

(Marinheiro das Montanhas, BRA, FRA, ALE, ALG, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Karim Aïnouz
  • Roteiro: Karim Aïnouz, Murilo Hauser
  • Duração: 95 minutos

O olhar trepido de Karim Aïnouz ao embarcar para uma Argélia pertencente ao seu imaginário emocional traduz em parte a conexão que o público estabelecerá com Marinheiro das Montanhas, seu novo longa documental, parte de uma tríade de filmes saudosos de uma origem a ser descoberta, investigada e, aqui, vivenciada. Esse olhar inquieto, algo trêmulo, interessado porém distante, encontra conexão porque seu diretor divide com o público quem é, o que quer e mesmo suas dúvidas, sua falta de entendimento do que o levou até ali. A busca é genuína e compreensível; o motivo dela também, mas sua raiz tem inúmeras nuances que o filme apresenta gradativamente, e que pode revelar não apenas sua procura, mas uma fatia desconhecida do homem Karim até pra si mesmo.

Aïnouz, a essa altura, não precisa provar muito mais coisa, e encontrou nesse momento de carreira espaço para olhar pra si, e fazer desse movimento cinema legítimo, deixando para o final de sua trilogia informal um baile de pessoalidade. Apesar da origem argelina, apesar do espaço geográfico que o separa de grande parte do espectador analítico de seu filme, o material para conexão é farto. Sentir-se deslocado, no corpo, no espaço físico, na pele, no emocional, talvez seja a textura temática do momento, e o diretor direciona essa busca particular para uma aldeia muito privada de sua essência; com isso, atinge vilas múltiplas de compreensão entre qualquer um que tenha em algum momento observado a própria história vagar estranhamente dentro de si.

Marinheiro das Montanhas
Cortesia Mostra SP

A moldura escolhida não esbarra com os longas anteriores (Aeroporto Central e Nardjes A.) pois Aïnouz entende que sua História se anuncia própria, de realização principalmente. Sua narração em off, que em tantos filmes soam pretensiosas, auto centradas, aqui invade o espectador como o alento de um conhecido que temos interesse em acompanhar, mesmo sem saber quase nada a seu respeito. Preservando a todos – à memória de sua mãe, a origem de seu pai, a relação dos dois, ao público que adentra sua obra, e a si mesmo – o diretor descobre um caminho de estrangeiro íntimo, revelando um passado histórico sem perder o contato com sua delicada árvore genealógica, tecida há tantas eras até chegar a Inês, o futuro literal.

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Essa peregrinação por um passado idílico, estrangeiro e sonhado, que acaba por se conectar a um projeto de amanhã igualmente sonhado, a vibração que corre por enfim materializar o que era da ordem do estranho, é uma das molas mais interessantes desse Marinheiro das Montanhas. Em determinado momento de sua reta final, Aïnouz confabula uma passagem de delírio pra si mesmo (“cultivar uvas, me reinventar nas montanhas e abrir uma boate”) que esbarra no desejo por ideais de mudança, muito particulares, e que encontra eco em seu tropeção no futuro vivo, na forma dessa prima que rapidamente se afeiçoa a ele, sem verbalizar. Como se a fatia da História enfim encontrasse um portal para um projeto de futuro, que não se sabia necessário até então para ele, mas que se representa essencial para a sociedade.

Marinheiro das Montanhas
Cortesia Mostra SP

Com a bela montagem de Ricardo Saraiva passeando entre a contemplação de encantamento, com uma textura que visa deslumbrar o espectador através das descobertas junto do seu narrador, e a vertiginosa reconstituição de sensações captadas mais pelo homem Karim que pelo diretor Aïnouz. De ritmo envolvente, esse novo longa se amarra aos outros seus dois títulos anteriores, captando cores diferentes para suas intencionalidades prévias, mas consegue igualmente ter vida própria. Ainda que seu resultado venha de um lugar já cooptado por outros longas, seu resultado nos assegura uma vivacidade única para contar uma história que parte de um centro familiar pra alcançar olhares de tantas origens diversas.

Marinheiro das Montanhas ganha cores diversas ao propor que essa investigação personalíssima descobra fragmentos de uma mãe que nunca será devidamente descoberta pelo público, de uma história de amor que não será descoberta por um filho, mas que ainda assim encanta pelas suas ausências, e elipses emocionais. O olhar juvenil desse jovenzinho Karim que descobre sua terra natal é suficiente em beleza narrativa, que deságua em realização limpa, sem excessos, mas extremamente carismática. Uma abordagem delicada de suas entranhas emocionais, que resvala no rosto de todo um país, que aos poucos identifica o estrangeiro, o abraça mas nunca pertence a ele. Reside aí a universalidade de seu feito; Karim, ao final, é tantos que chega a ser a gente, também.

Um grande momento
O olhar de Inês

[45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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