Crítica | Festival

Mirrors No. 3

Entre silêncios e repetições

(Miroirs No. 3, ALE, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Christian Petzold
  • Roteiro: Christian Petzold
  • Elenco: Paula Beer, Barbara Auer, Matthias Brandt, Enno Trebs, Philip Froissant, Victoire Laly, Marcel Heupermann
  • Duração: 86 minutos

As repetições de Miroirs, suíte em cinco movimentos de Maurice Ravel, carregam uma tensão entre o gesto e o eco, entre o som que volta e o que se perde no ar. É música feita de espelhos e, como eles, devolve a forma deformada, tremida, humana. Christian Petzold parte desse mesmo princípio em Mirrors No. 3. O que se repete no filme nunca é idêntico, e o reflexo é sempre outro. O filme se constrói como uma partitura de silêncios e retornos, em que a solidão tem peso físico, e o cotidiano se alonga até tocar o absurdo beckettiano, esperando que algo aconteça, mesmo sabendo que nada virá.

Quando Laura (Paula Beer) sobrevive a um acidente quase fatal e passa a viver na casa de Betty (Barbara Auer), ali, entre a normalidade e o estranhamento, a convivência vai se estabelecendo de forma ambígua: entre acolhimento e invasão, cuidado e substituição. Petzold prefere sugerir a lidar, observa os gestos discretos, as roupas emprestadas, a bicicleta que não funciona. O mistério tem muitos espaços para ocupar e é no desconhecido que o filme se fortalece.

A casa de Betty, esvaziada de sua família pouco presente – o marido Richard (Matthias Brandt) e o filho Max (Enno Trebs) – torna-se palco de uma reconstrução que é também assombração. Laura ocupa o espaço de quem partiu, e ao ser acolhida se transforma na sombra de quem falta. Petzold filma com a precisão de concerto de câmara, com ritmo contido, luz que entra devagar, tratando cada enquadramento como um acorde. Mirrors n.3 acaba sendo um filme sobre a ideia de lugar e sobre a incerteza de ocupá-lo.

A aproximação entre Laura e Betty se move no limite entre o maternal e o obsessivo. Há um afeto que tenta se reestabelecer e uma culpa que não se dissolve. As duas se aproximam como se buscassem reparar o irremediável. A aparente serenidade da casa logo se torna inquieta, nas janelas abertas demais, objetos fora de ordem, silêncios que duram tempo demais. Petzold cria tensão com gestos mínimos, rachaduras discretas na superfície. Tudo parece em repouso, mas há algo fora de lugar, como uma nota que insiste em soar depois que a música terminou.

Visualmente, o filme é contido. Poucos personagens e cenários, e uma luz natural que não busca beleza, mas presença. Na cena em que Laura toca piano – o Ravel que se insinua como título volta aqui como atmosfera – o momento é ritualístico. A repetição chega como memória, o som, como permanência. Petzold entende o drama como vibração interna, não como explosão. É algo que acontece nas pausas, nas respirações entre uma frase e outra.

Ainda assim, Mirrors n.3 tem suas limitações. Às vezes, o rigor se transforma em distanciamento, e o enigma perde força diante da contenção. O longa não se decide entre investigar e retratar, terminando mais próximo do segundo. Quem vem das viradas intensas de Phoenix ou Em Trânsito pode sentir falta de impacto, pois o gesto aqui é outro: o de trabalhar com o não-dito, encontrar emoção na forma.

O que fica ao final do filme é a ideia de que a família pode ser esse abrigo precário onde o acolhimento e o estranhamento convivem, onde a memória contagia e se transmite, não como herança. Petzold filma o que passa entre corpos, o que se repete sem se repetir e o que volta diferente. Por isso, Mirrors No. 3 fala de continuidade e ausência, de vida e eco, e de como habitamos lugares que já foram de outros.
Ravel entenderia. Beckett, talvez, sorrisse em silêncio.

Um grande momento
Ao piano

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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