Crítica | Cinema

Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte 1

Heróis em fogo brando

(Mission: Impossible - Dead Reckoning Part One, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Ação
  • Direção: Christopher McQuarrie
  • Roteiro: Christopher McQuarrie, Erik Jendresen
  • Elenco: Tom Cruise, Hayley Atwell, Rebecca Ferguson, Esai Morales, Ving Rhames, Simon Pegg, Vanessa Kirby, Pom Klementieff, Shea Wingham, Greg Tarzan Davis, Henry Czerny
  • Duração: 160 minutos

Ethan Hunt é um personagem e tanto realmente, não me admira Tom Cruise estar tão indócil para se despedir dele. Em momento “não repitam essa heresia em casa”, ao  compará-lo com outro personagem icônico de gênero hoje, é um tipo mais bem construído e interpretado que o John Wick de Keanu Reeves. Mas a comparação é minimamente justa porque Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte 1 estreia apenas 4 meses após John Wick 4, e é muito complexo separar os dois filmes, para olhá-los sem a luz do outro, quando eles se comunicam de muitas formas. Apesar de ambos darem partida no deserto, e ambos terem sequência de ação na famosa rotatória de Roma, são seus protagonistas que fazem esse exercício ingrato (e injusto), inevitável. E o longa de Christopher McQuarrie precisa passar por uma reconstrução analítica para que seus predicados não sejam sombreados pelo espetacular fenômeno de Chad Stahelski. 

Ainda que o trabalho de montagem a cargo do recém indicado ao Oscar (por, óbvio, Top Gun: Maverick) Eddie Hamilton consiga feitos quase miraculosos ao encadear uma série desconcertantes de eventos, torná-los coerentes dentro de seu ritmo sem prejudicar a construção de sua ação verbal e da costura de sua “família”, é necessário olhar para essa nova aventura com olhos pacatos. Isso para não prejudicar um material de nível elevado ao cobrar do seu resultado uma obrigatoriedade que a série motivou o espectador a esperar, que é o exponencial crescimento de sua escala. Não se sabe – mas pode ser que sim – se Cruise percebeu que não daria mais para ir até onde Reeves está indo com um artesão impecável como Stahelski à sua disposição, e Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte 1 precisa recalcular sua rota em plena queda livre. 

Se nos últimos dois capítulos, a parceria entre Cruise e McQuarrie se amalgamou em um ritmo de não sabermos mais onde começava a criatividade de um e onde terminava a execução do outro, em Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte 1 temos um retorno ao interior de seu protagonista. Talvez motivados pela experiência bem sucedida com o que Top Gun trouxe para o cerne da narrativa, Hunt volta a ser o centro nervoso da história, e a ação ao seu redor parece gravitar em torno de algo ainda mais indomável que suas cenas – seus próprios sentimentos e lembranças. Há sim momentos formidáveis na mise-en-scene da ação gráfica, como na luta com a cada vez melhor Pom Klementieff (de Guardiões da Galáxia) ou a sequência interminável do saguão do aeroporto, assim como o desfecho no desfiladeiro e os vagões de trem, mas à exceção dessa sequência final e obviamente tomando as devidas liberdades, a série parece ter fincado os pés no chão. 

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Provavelmente isso deve ter feito bem à franquia como um todo, além de não podermos esquecer que se trata (em tese) da primeira parte de um duo – logo, todo o lado vertiginoso pode ter sido acoplado no capítulo seguinte, que dizem ser a despedida da série. Mas como vivemos em um universo onde Wick, Toretto e sua família, e o Bond Craig parecem cada vez mais dispostos a superar as noções de adrenalina e os limites que separa o Homem do imponderável, esse possível freio de mão puxado (ainda que de leve) em Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte 1 é benéfico. Talvez o tio brucutu não compreenda isso, mas os conceitos de afeto entre aqueles seres são verbalizados pelo personagem de Simon Pegg e fazem sentido dentro do que acompanhamos, quando suas ações provocam baixas concretas, ou baixas de um passado remoto voltem a motivar nosso protagonista. 

Como tem em mãos um elenco formidável, além dos já citados, ainda o carisma infinito de Ving Rhames, Rebecca Ferguson que não consegue piorar um décimo de um trabalho para o outro, Vanessa Kirby mais uma vez muito inspirada, um Esai Morales como há muito não víamos (pelo amor de quem quer que seja, deem mais chances a esse ator!), e Hayley Atwell mostrando muito a que veio, ninguém precisa se preocupar. Nem o espectador e nem Cruise, porque se o ritmo aqui tem uma cadência mais particular, e sua ação está a um mesmo tempo frenética como sempre mas também orgânica e algo crível, seus atores têm em mãos personagens muito bem construídos, que dotam o filme de uma energia que, mesmo dentro da pirotecnia, exala humanidade. É como se realmente estivéssemos acompanhando uma troca de bastão em cena, com Hunt observando seu futuro com mais atenção e consistência emocional. 

Na parte narrativa, o roteiro de McQuarrie e Erik Jendresen consegue coincidências apavorantes (a sequência do submarino nos deixa simplesmente sem reação; como pôde?) e explora sem sutilezas a ladeira abaixo onde podemos estar entrando ao confiar nossas funções ao crescente de tecnologia ao nosso redor. Ainda que possa soar óbvio, Missão: Impossível: Acerto de Contas – Parte 1 é uma produção hollywoodiana que poderia estar apenas entretendo com excelência, mas que também transita por tentar responder sobre o controle que sistematicamente demos às inteligências artificiais espalhadas pelo mundo. É como se, mais uma vez, Cruise estivesse falando que o futuro tecnológico não pode depredar o que está defronte a nós, os que comandam os inanimados. A alusão constante à volta dos analógicos é a voz do próprio astro gritando pela salvação do artesanato que é a sua arte, e a forma como pretende continuar ofertando-a ao seu público. Pelo menos, por enquanto. 

Um grande momento

O aeroporto

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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