Crítica | Festival

Você Nos Queima

Gentil amante do gesto

(Você Nos Queima, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Caetano Gotardo
  • Roteiro: Caetano Gotardo
  • Elenco: Caetano Gotardo
  • Duração: 72 minutos

Menos de 10 minutos após começado, Você nos Queima nos mostra seu diretor, Caetano Gotardo, em cena. Emocionado. Não, não sei se é Gotardo… pode ser José, seu personagem em Desaprender a Dormir, aqui tornado o autor de sua própria obra, e ao mesmo tempo ainda conectado àquele homem fragilizado por uma solidão vivida em conjunto. Querendo afeto, amparo, amor e sexo. A lágrima é desse homem na frente da tela – quem é esse homem? Seu novo filme tenta responder onde está inserida sua sensibilidade de autor, ator, performer, artista.

O transe de Gotardo está em cena mas não está somente agora, no exato momento desse binômio que seu filme forma com o de Gustavo Vinagre dentro da quinta edição do Festival Ecrã. Ele é formado pela totalidade de sua obra, o diretor por trás de O que se Move, Todos os Mortos (ao lado de Marco Dutra) mas principalmente o autor de Seus Ossos e Seus Olhos, sua obra mais injustamente incompreendida. É da natureza que esse artista imprime em cada um de seus longas e curtas que adianta seu novo filme, um compêndio sobre o corpo, logo uma ode ao humano e suas belezas fugazes e não-reconhecidas.

Você nos Queima
Cortesia Festival Ecrã

As mãos tensas dentro do metrô, que com o dedo mindinho tocam o joelho de alguém íntimo; não tão íntimo a ponto dessa palma se abrir, uma intimidade mínima que só permite esse micro toque. Dessa breve imagem podemos realizar a gênese não apenas de Você nos Queima, mas de uma obra contínua. O gesto interessa a Gotardo, a intersecção humana causada pelo gesto tátil ou mesmo sonoro, e não começou aqui – une seu corpo em cena aos corpos que ele timidamente filma à revelia de seus donos, extraindo sua muito indecifrável arte.

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O relato interessa a Gotardo, e sua veemência em relatar é tão profunda, sua relação com a palavra, com o som e com a textura é tão verdadeira, que nos aproxima de sua obra-instalação, de sua carne e de sua performance, esteja ela na interpretação, na locução,na dança ou na captação de imagens talvez proibidas, porque na verdade é um combo múltiplo e indissociável. Sua rede de cuidado vai além do cuidado que ele tem consigo mesmo para invadir também as imagens que ele capturou de transeuntes nos corredores dos metrôs de São Paulo, com o qual ele divide com o espectador tal delicadeza a ponto de nos tornarmos empáticos a pessoas sem rosto.

Você Nos Queima
Cortesia Festival Ecrã

Se no primeiro bloco de capturas a solidão do gesto se faz presente, na tentativa de livrar-se da mesma, o segundo grupo é um grupo do encontro, da beleza do partilhamento, do buscado encontro de distribuir querer bem através do que comunica os membros. Desses dois recortes, partimos para o experimentalismo do terceiro, onde o diretor cria na sua própria montagem os seus encontros artificiais, recheados de uma beleza forjada. A dança enquanto material performático, coletivo ou individual, coroa esse manancial de profunda investigação do voyeurismo, com desejo sempre — de conhecer, de ter, de se aproximar e, mentalmente, tocar; ele e nós.

O que Você nos Queima tenta, com seu caleidoscópio de informações a respeito da forma como nossa linguagem corporal revela sobre nós, e de como podemos enquanto espectadores (nós e também o autor) infringir verdades a imagens que não as sustentam, é reafirmar o potencial de Gotardo enquanto gentil amante do gesto e profundo interessado na observação do seu semelhante. Através desse interesse metódico e talvez obsessivo, sua obra se engrandece de detalhamento textual e gestual, traduzindo em movimento e trabalho físico o que muitas vezes é gasto em vazio, no audiovisual. No olhar de Caetano Gotardo, cada interação — com o outro ou consigo — é dotado de significado e significante.

Um grande momento
Justaposição no metrô

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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