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A Música da Minha Vida

Quando Manzoor descobriu Springsteen

(Blinded by the Light, EUA, 2019)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Gurinder Chadha
  • Roteiro: Sarfraz Manzoor, Gurinder Chadha, Paul Mayeda Berges, Sarfraz Manzoor, Bruce Springsteen
  • Elenco: Billy Barratt, Ronak Singh Chadha Berges, Viveik Kalra
  • Duração: 118 minutos

A Música da Minha Vida é sobre a influência e o poder transformador da obra musical daquele que, ainda bem jovem, foi intitulado “o Chefão”. Bruce Frederick nasceu em Long Branch, nas proximidades do parque Asbury, em 23 de setembro de 1949 e passou a sua infância e juventude em Freehold Borough, também no estado de Nova Jersey. O pai dele, Douglas, era de origem holandesa e irlandesa, e, entre outros empregos, trabalhava como motorista de ônibus. A mãe dele, Adele Ann, tinha ascendência italiana e trabalhava como secretária.

De origem humilde, parte da classe trabalhadora formada por aqueles que vivem perto do esplendor de Nova York mas são uma espécie de subúrbio, mantendo as engrenagens da Big Apple operando, surge aquele que é dono de uma das vozes mais emblemáticas do século 20. Que surge como uma espécie de Dylan roqueiro mas que logo se revela tão autêntico quanto o bardo folk de Duluth. No final dos anos 80, o adolescente Sarfraz Manzoor ouve pela primeira vez Bruce Springsteen e decide quem quer ser por intermédio do que aprendeu com as canções.

A Música da Minha Vida

Mais de 30 anos se passaram, Manzoor se tornou um escritor e contou sua história em livro, que virou filme. Mas ele queria ter certeza de realizar o sonho como imaginou e conseguiu o aval de Bruce Springsteen, que assistiu ao primeiro corte da obra dirigida por Gurinder Chadha e não teve dúvidas em se envolver num projeto que, no entendimento dele, compreendia bem o seu propósito.

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Saudações: A Música da Minha Vida, disponível na HBO GO, não só compreendeu o legado de Springsteen e a história de vida de Manzoor como é o “feel good movie” mais bacana de 2019/2020 até agora. 

Bruce é o herói das pessoas comuns. Aos 70 anos, ele segue fazendo canções que falam ao coração de muita gente como de um jovem paquistanês. A cena em que, sozinho, no escuro do quarto, Javed (Viveik Kalra) começava a ouvir no toca discos “Dancing In The Dark” e mimetizar, fazer e sentir exatamente o que está dizendo a letra é bem simples mas ao mesmo tempo bem construída, sem parecer forçada. Sendo um musical que segue um estilo de mis en scène semelhante ao de Rocketman – os números são integrados as sequências dramáticas -, A Música da Minha Vida gera um quentinho, um calorzinho bom no coração ao ir aprofundando as interações do protagonista com sua família, amigos e vizinhos.

A Música da Minha Vida

Esses são personagens falhos mas humanos, com camadas de aprofundamento como o melhor amigo que parece um integrante do Human League mas é despido de vaidade, o pai culto e engraçado dele, a namorada militante e o vizinho que parece nazista mas na realidade é um veterano de guerra que odeia a extrema direita, que sempre incentiva  Javed a perseguir a carreira de escritor. A família paquistanesa é um pouco mais caricata mas com uma certa delicadeza, com ao menos uma das irmãs recebendo atenção do roteiro escrito por Manzoor e Chadha em colaboração com Paul Mayeda Berges.

Até a montagem adquire um ritmo mais frenético – mais Bollywood! – com a imersão de Javed no universo de Bruce Springsteen e da E Street Band. Às mudanças no figurino se seguem os atos de rebeldia, sempre com o walkman a tiracolo tocando “Born To Run”, “Thunderoad”, “Cover Me”, “Hungry Heart”, “Darkness in the edge of town” e “The River”. A cena onde ele imagina os jovens paquistaneses, que estão dançando músicas hindi numa boate, durante uma matinê, ao som de “Because The Night” em slow motion guarda um subtexto muito bonito sobre a liberdade para ser quem quiser. 

A Música da Minha Vida

Danny Boyle teve suas andanças pela cultura indiana, fez mais sucesso com Quem Quer Ser Milionário do que Chadha (sino-britânica nascida no Quênia) com, por exemplo, Driblando o Destino, mas agora a cineasta faz um filme que é tudo o que Yesterday não é: um acalentador conto sobre ter a música como farol de esperança. Sobre não deixar a dureza da vida nos esmorecer.

“Eu vi o futuro da música e seu nome é Bruce Springsteen. Em uma noite na qual eu precisei me sentir jovem, ele me fez sentir como se escutasse música pela primeira vez.” A frase é de Jon Landau e está numa resenha de um show feita para a “The Real Paper” em 1974, mas poderia ter sido proferida por Javed em 1987 ou pelo amigo Roops, um sikh (uma religião de quem é natural de Punjab, região separatista da Índia) que frequenta a mesma escola em Luton e o apresentou as músicas de Springsteen. Juntos, os dois saíram do Bury Park para conhecer Nova Jersey e compreender que: ao navegar num rio que não sabia para onde estava indo, você fez uma curva errada e continuou seguindo. A angústia adolescente com a graça dos números musicais.

Trazendo nuances bem equilibradas entre a vida privada, familiar e pública de Javed sem apelar para invencionices de linguagem, a cineasta vai ao longo do segundo e terceiro atos explicitando que até o pai turrão e quadrado tem um coração faminto. O confronto com os neo-nazistas faz Javed tomar uma decisão definitiva de trilhar o próprio caminho e cortar com a faca a dor no coração. 

A Música da Minha Vida

Ele, que estava cego (e faz referência a canção “Blinded by the light”, título original do filme) a primeira vez que ouviu Bruce Springsteen, não compreendia que não tinha que viver pelas palavras, pelas letras das músicas mas sim que precisava enxergar uma maneira de construir uma ponte para chegar até suas ambições e não um muro que o manteria isolado da família.

Claro que a versão audiovisual é uma edição, uma versão mais doce do fatos envolvendo a história de Manzoor com o Chefão, que existem certas facilidades narrativas mas que não chegam a tornar o filme inverossímil ou enfadonho. É divertido, comovente e comunica bem com todos aqueles que já se sentiram fracassados ou inadequados, ou seja, a maioria de nós. 

Gurinder Chadha já havia pego um dos bastiões da literatura inglesa – que tem centenas de versões pro cinema e tv – e adaptado ao gosto, digamos asiático com o seu Bride and Prejudice. Agora ela une a estética Bollywood a um filme tipicamente oitentista sobre “superar suas limitações e mudar” para além de refletir sobre os efeitos perniciosos da Era Tatcher num país Ainda extremamente xenófobo mas onde é possível enxergar a luz no fim do túnel.

Um grande momento
Discurso de coração aberto

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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