Crítica | Festival

Nasir

Uma vida devassada pela paixão

(Nasir, IND, HOL, CIN, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Arun Karthick
  • Roteiro: Arun Karthick
  • Elenco: Koumarane Valavane, Sudha Ranganathan, Yasmin Rahman, Bakkiyam Sankar, Jaffar Abdul
  • Duração: 85 minutos

Embarcar em Nasir é ter acesso a uma Índia que passa ao largo do esperado como tradicional não apenas pela visão do Ocidente quanto pela exportação de suas imagens. O diretor Arun Karthick tem a juventude dos 28 anos que se espera de alguém que pretende subverter suas origens com imagens inusitadas da mais absoluta mistura de introspecção com naturalismo, agindo no limite da linguagem documental. Ao mesmo tempo em que não constrói necessariamente uma visão diversificada enquanto linguagem cinematográfica, Karthick o realiza por se tratar de seu país descaracterizado do habitual, e imerso em uma espécie de poesia cotidiana sobre o mundano. Somos expostos a imagens banais que nos transportam não para o país exótico explorado pelo cinema, mas para uma família em seu dia a dia, que poderia estar em qualquer lugar.

O filme parte de uma viagem da esposa do protagonista Nasir para um casamento familiar onde aparentemente será explorada, e é desse período que se tratará a produção, observando esse homem comum a lidar com problemas domésticos geralmente relegados a uma figura feminina, e compondo também o painel de seu ambiente de trabalho, uma loja de roupas tipicamente indianos – sáris, principalmente. Sua relação com suas figuras familiares com vários problemas de saúde e com o patrão e os colegas de trabalho montam o filme, que passeia com insuspeita dedicação a banalidade apresentada nesses dias onde o personagem-título cria uma dinâmica para lidar com realidades a mais em sua dinâmica pessoal.

Nasir

Em uma fatia dos acontecimentos do filme, são revelados poucos detalhes concretos de sua vida ou de sua família, apenas na superfície são descritos a saúde de seus membros, ou sua situação econômica de maneira verbal. Mas o trabalho imagético vai além do seu olhar etnográfico que geralmente é lançado a pessoas em situação marginal ao interessar do Cinema; ele deflora detalhes que ultrapassam a visão poética das coisas. O chapisco das paredes ao fundo de um banho, tal banho ser descrito como uma ducha e realizado como uma espécie de “lavagem rápida com baldes e canecas”, e aos poucos vamos sendo apresentados a camadas de pobreza que não são explicitadas, e talvez até sejam sejam acusadas por uma certa glamourização, mas que não são exploradoras pelo filme com um filtro de beleza; as coisas são como são, diretas.

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O trabalho de captura, apesar do que poderia se supor, na verdade não prescinde de sofisticação na criação de planos. Embora o filme não abra mão dessa aproximação com o registro documental na escolha de foco, no caráter observacional da forma com que aborda seus personagens, o fluxo de imagens não é carente de cuidado e delicadeza; ainda que em tese o filme caminhe numa zona de risco para estetizar sua relação com as imagens, não cabe acusar o resultado de nenhum extremo, seja ele burocrático ou estilizado em excesso. O que temos é uma supressão da maior parte dos elementos que poderiam dramatizar a ação, mantendo-a seca e sem enfeites, ainda que Karthick tenha já uma autoralidade a exibir.

Nasir

Em determinado momento, vem o pulo do gato do filme, de maneira inesperada: Karthick deixa claro que está construindo uma carta de amor, e de maneira muito simples e direta, tudo faz sentido e se intensifica. Nasir é um homem apaixonado e isso é o grande elemento que une todas as pontas da história, deixando chegar a superfície um filme que estava nas entrelinhas e que eventualmente vazava pelas imagens e sons – das vozes em quadro até as marchas e manifestações fora dele, do homem na frente das câmeras até oa sentimentos e da paixão que florescem por trás delas, tudo carrega uma singeleza emocionante quando o quadro se completa. E, acreditem, ele só se completa no quadro final, que ressignifica mais do que o filme, mas toda a experiência proposta por ele, o lugar onde ele quer chegar, sem nunca negar o que veio antes, talvez até isso seja ressignificado pelo todo e vice versa.

Com um clímax que aparentemente destoa de toda a construção estabelecida até então, é um ato de reobservação de cada esquina e lacuna do material que transforma Nasir em uma experiência quase completa, porque ele trata de diversas texturas que se interligam através de coisas não-ditas, ou arranjadas em contexto de aparência vazia. É com o olhar para as camadas expostas cena a cena que entendemos que o trabalho de Arun Karthick era de renovação de linguagem, mas também de reapropriação de signos regionais de liberdade de expressão, que nos levam a uma catarse contínua – uma pancada de percepção sobre o real sentido das coisas no mundo de hoje.

Um grande momento
O acachapante plano fixo final de 2 minutos – que parece ter 2 horas.

[9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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