Crítica | FestivalMostra de Tiradentes

Natureza Morta

(Natureza Morta, BRA, 2019)
Drama
Direção: Clarissa Ramalho
Elenco: Mariana Fausto, Rômulo Braga, Helena Ignez, Cátia Costa, Barbara Vida, Paulo Azevedo, Rose Abdallah e Octávio III
Roteiro: Júlio Ribeiro (romance), Clarissa Ramalho
Duração: 110 min.
Nota: 5 ★★★★★☆☆☆☆☆

O cineasta Ricardo Miranda lançou, em 2011, Djalioh e, em 2014, Paixão e Virtude, ambos baseados em obras de Gustave Flaubert e componentes de uma trilogia encerrada por este Natureza Morta. Com o falecimento do realizador, sua parceira de projeto Clarissa Ramalho assumiu o comando do filme, adaptação do romance “A Carne“, publicado por Júlio Ribeiro em 1888 – oito anos após a morte do autor de “Madame Bovary“.

Polêmico exemplar do naturalismo literário, o livro causou muito burburinho e foi “condenado” por muitas famílias, que proibiram suas filhas de o lerem. Inovador na época, o texto de alto teor sexual relata comportamentos animalescos influenciados pelo ambiente. Mulheres dentro de casa sofrendo por amor e homens circulando sem amarras são características do gênero que Ribeiro, no entanto, faz um mínimo esforço de questionar. Há o desejo – cumprido – de chocar, ao passo que o trabalho de Clarissa sugere um desejo de confundir: qual o sentido desse filme?

Em história da arte, natureza-morta é um estilo que ganhou força no século XIX retratando coisas inanimadas em cenário doméstico, destacando-se a atenção às cores, formas e composição. Com o passar das décadas, quando feito sem ironia ou transgressão, perdeu a relevância. Não foi por acaso que a diretora assim batizou este longa-metragem, cujo anacronismo se resume às tatuagens aparentes dos atores e uma performance de dança contemporânea no meio do drama.

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São 110 minutos de tortura ou diversão, dependendo do ponto de vista, acompanhando gestos lentos e imprevisíveis, sequências performáticas, revezamento de narração, discursos para a câmera e composições carregadas de erotismo. Lenita, personagem principal da trama que se passa no fim do século XIX, perde o diferencial de ser uma jovem independente, avessa ao matrimônio e ligada às ciências, quando se vê derrubada por mal misterioso. Uma vacina e ela “vira fêmea” necessitada de macho, desesperada para encontrar um par. Se faz presente a ideia de histeria como doença exclusivamente feminina ocasionada por irregular fluxo de sangue do útero ao cérebro e, ainda que haja a equiparação do “mal de amor” masculino e feminino e o surpreendente – para a época – final da publicação seja mantido, a recusa de Natureza Morta à atualização e problematização não ajuda o discurso protofeminista que ele visa propagar. Estupro é algo sério demais, especialmente considerando o tema da obra, para ser romantizado.

É possível encontrar no longa-metragem muitas afirmações que bizarramente voltaram a ser usadas nos dias de hoje de forma séria, o credenciando como alerta ao grau de retrocesso brasileiro. É complicado, no entanto, o defender a partir do argumento que os fins justificam os meios ou o final compensa todo o percurso tortuoso, pois Natureza Morta acaba sendo capaz de oprimir a espectadora tanto quanto é oprimida sua protagonista.

Assemelha-se àqueles livros de velhos contos eróticos destinados ao público feminino e vendidos em bancas de jornal, só que em edição de luxo com capa dura, texto oscilando entre o explícito e o hermético e ilustrações abstratas. Minha sugestão de playlist para acompanhar a leitura de tal publicação, amaciando-a e incendiando-a com ares contemporâneos, seria, na ordem: “Não Sou Obrigada” (Pocah); “Quero te Dar” (Gaiola das Popozudas); “Cabô Caqui” (Tati Quebra Barraco); “Verdinha” (Ludmilla); “Cilada” (Molejo); e “Deixa Ele Sofrer” (Anitta).

Um Grande Momento:
“Covarde!”

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[23ª Mostra de Tiradentes]

Taiani Mendes

Crítica de cinema, escritora, poeta de quinta, roteirista e estudante de História da Arte. Também é carioca, tricolor e muito viciada em filmes e algumas séries dos anos 90/00.
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