Crítica | Festival

Joonam

De volta à origem

(Joonam, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Sierra Urich
  • Roteiro: Sierra Urich
  • Duração: 100 minutos

Sierra Urich sente saudade de um lugar que ela não conheceu. Alguma coisa dentro dela busca agora o elo perdido que define a sua identidade. Ela vivencia resquícios de um passado perdido e que se reconhece em traços fortes impressos nas figuras da mãe e da avó. São figuras muito presentes, mas que ora preferem não lembrar, ora têm medo de dizer, e ela não soube como se posicionar para buscar as respostas, ou não precisou delas. Até agora.

O filme Joonam é uma espécie de diário dessa busca por si mesma e da reconexão com as origens a partir da relação de três mulheres. Partindo do individual e alcançando as complexidades de Sierra, Mitra e Behjat, filha, mãe e avó, respectivamente,  se transforma num retrato muito profundo, ainda que personalizado, de um país que passou por mudanças, rupturas e, com elas, definiu caminhos e personalidades. Como em qualquer documentário familiar, os limites são confusos aqui e relações de poder e afeto se confundem a todo momento, mas a intimidade facilita o processo e rende bons momentos. 

Há humor e drama, assim como tensão, e Sierra sabe que pontos deve destacar. Se sua ideia é mostrar sua desconexão com as origens, deixa clara a sua principal dificuldade: a língua. Acompanhamos suas aulas virtuais de persa e a dificuldade de comunicação com Behjat, em conversas mediadas por Mitra, que por vezes ultrapassa o papel de tradutora e quer definir o que deve ou não ser dito no filme. A diretora também define que, para se conhecer, é preciso que a compreensão do Irã, pelo menos a que suas ancestrais têm dele, esteja determinada e tenta buscá-la.

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O que se vê em Joonam traz muito do que se espera, mas chega de maneira diferente. Além de conhecermos detalhes mais íntimos e passearmos por conversas restritas familiares, somos apresentados a visões pessoais da revolução, com vivências que destacam a realidade machista das mulheres na sociedade e outras mazelas do regime de Reza Pahlavi, e a truculência e intransigência da teocracia estabelecida pelo aiatolá Khomeini, que fez a família mudar-se para os Estados Unidos. Neste ponto, Sierra busca material de arquivo que vai além das imagens domésticas, sem nunca desprezá-las, pois sabe o quanto é importante e significativo mostrar a liberdade de sua mãe artista na universidade ou a chegada dos avós no aeroporto.

A diretora também junta trechos de conversas e alguns deles são muito impactantes, como o em que ela tenta descobrir o que aconteceu com seu avô, assassinado. Isto vira uma grande questão, com a história terrível sendo revelada ao público, mas todo o trauma e o medo se mostram muito reais, mesmo depois de tanto tempo morando nos Estados Unidos. As falas da mãe, temendo a punição da filha diretora pelo regime, são muito impactantes e, incrivelmente, muito contraditórias com sua personalidade e as imagens de suas obras, mostradas rapidamente pouco tempo antes. Essa personagem, Mitra, aliás, é a mais interessante do filme, com toda a sua contrariedade, riqueza e até mesmo quando analisado seu comportamento dentro do fazer documental, numa postura que está sempre no limiar entre atuação e espontaneidade.

Joonam tenta fazer com que o espectador experiencie a incomunicabilidade ao registrar tentativas de conversa com a avó – ou continuidade da conversas – sem a presença da mãe e a tradução parcial, com legendas em persa de algumas falas. E demonstra que nem sempre isso está atrelado à lingua, expondo que ela também esta presença na convivência mãe-filha, em conflitos geracionais ou mesmo de personalidade. Aquele velho jogo de amor e disputa, comparação e admiração, tão confuso e complexo que define a relação, aqui, relações.

Em formato simples mas de conteúdo complexo, Joonam fala de encontro e reencontro, do se conhecer de uma maneira mais profunda, buscando aquilo que não sabe e expondo o que sempre esteve ali sem ser acessado, nas origens perdidas, em um país que agora se conhece pelo compartilhado e pela câmera de um celular. Uma jornada mágica e muito pessoal, que Sierra soube como deixar envolvente.

Um grande momento
A discussão com a mãe

[Sundance Film Festival 2023]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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