(Nocturne, EUA, 2020)
A premissa de Noturno já foi vista diversa vezes no cinema, entre elas, A Malvada, Showgirls, Cisne Negro. Aqui, está mais próxima desta última, com elementos psicológicos que nela interferem fortemente. Como o título pode antecipar, o mote é música. Peças clássicas de Mozart (que apadrinha o filme com sua presença pictórica), Schubert, Brahms e Dvorak se contrapõem às batidas marcantes de Gazelle Twin, trazendo ao filme essa relação entre uma dedicação que abre mão da juventude e os hormônios típicos da idade, com arroubos, necessidades e crenças.
Parte da série Welcome to the Blumhouse, Noturno é o primeiro longa de Zu Quirke e se destaca pelo visual e pela condução dos atores. O tom de suspense e terror é estabelecido logo na primeira sequência, quando, adentrando no escuro ao som de “O Trilo do Diabo”, de Vivaldi, conhecemos o conservatório onde a trama acontecerá e Moira se revela como a imagem dessa contradição entre as vindas dentro e fora. Como em um bom exemplar de horror, o clima é reforçado pela cor, pela arte e pelo desenho de som.
Porém, o filme não acredita que deve manter-se muito tempo na aura fantástica e refugia-se na normalidade, ainda que não natural, para construir a relação entre a protagonista e sua irmã gêmea – usurpadora e usurpada, e entre as duas e o espaço. São quebras de estilo e abordagem que acontecem por todo o filme e, muitas vezes, rompem com o pacto estabelecido com o espectador para apresentar aquilo que precisa ser mostrado. Quando se opta por elementos visuais que ilustrem o delírio, o imaginário da personagem é fundamental que esse vínculo estabelecido seja mantido. Quando Quirke, que também assina o roteiro, insere novos elementos, que não mencionam qualquer estranhamento exterior (ou mesmo interior), isso se perde.
A sorte de Noturno é que toda a criação da obsessão de Juliet é bem elaborada – há cenas realmente incríveis, como o passeio pelo vermelho ou o encontro inesperado – e consegue superar os tropeços. O modo como a personagem vai enlouquecendo e se deixando consumir pela vontade de ser tão especial como nunca será impressiona. No terror metafísico, em delírios de uma conexão com a perfeição inexistente, o inatingível virtuoso é instigante, principalmente pela realização gráfica de que o mundo da música em toda a sua precisão, mesmo que haja dedicação e abdicação, é cruel.
Você nunca se perguntou porque os Perahaias e Pollinis desse mundo não perdem tempo em competições em escolas? Eles superam esses obstáculos antes de os outros aprenderem a andar.
Outro ponto positivo em Noturno é como se mantém a essência de sua protagonista. Era muito fácil fazer com que Juliet fosse aos poucos transformando-se ou, ao menos, aproximando-se daquilo que conhecemos de Vivian ao longo do filme, mas Quirke não cai na armadilha. Além de toda a manutenção do visual, a postura de Sydney Sweeney (da série Euphoria) é desengonçada, retraída, sem jeito. Até mesmo quando está onde quer, ela está desconfortável e perdida. O extremo oposto da descolada Vivian de Madison Iseman (de Jumanji – Próxima Fase).
Com dificuldades aqui e ali, o visual potente de Noturno e alegorias muito relevantes – na vida daqueles que se dedicam à arte, seja ela qual for; ou na vida daqueles que se veem sempre comparados a alguém com quem têm muita proximidade e que acabaram seguindo o mesmo caminho – fazem do filme uma experiência para lá de interessante. Trazer o controverso e precoce Saint-Saëns para ilustrar, permanecer e amarrar tudo o que se vê também é uma uma metáfora bem interessante. Imagem ou desejo?
Um grande momento
Saída