Crítica | Streaming e VoD

Beauty

Certeza de independência 

(Beauty, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Andrew Dosunmu
  • Roteiro: Lena Waithe
  • Elenco: Gracie Marie Bradley, Aleyse Shannon, Sharon Stone, Giancarlo Esposito, Niecy Nash, Kyle Bary, Micheal Ward, Joey Bada$$
  • Duração: 95 minutos

Produzido e escrito por Lena Waithe (de Master of None e Queen & Slim), Beauty estreia hoje na Netflix como um acontecimento silencioso. Uma biografia fictícia sobre uma cantora negra prestes a explodir no início dos anos 1980 poderia ser um recado interessado a várias, talvez principalmente a Whitney Houston e seu vindouro I Wanna Dance with Somebody, a tentar Oscars ano que vem. Diferente do que é ‘Aline: A Voz do Amor’ e do que com certeza será uma biografia tradicional sobre Whitney, não há qualquer fórmula aqui a ser cumprida, qualquer meta a ser alcançada, a não ser uma visão de uma artista negra de hoje a respeito do que era ser uma mulher ainda mais periférica por habitar o mundo de 40 anos atrás. Essa visão é muito mais contundente, por ser muito mais dura, com um universo onde ninguém precisa ceder nada a qualquer parte. 

É corajoso observar não o que está no roteiro narrativo, mas a forma como o mesmo se transforma em imagem, com seu ritmo próprio e sua linguagem singular. Como passa ao largo de um molde pré-concebido que acaba por englobar esses modelos tradicionais biográficos, o filme não tenta montar um quadro para apreciação mais amistoso às plateias tradicionais. Apesar de caber exatamente na estrutura de uma Netflix da vida, a produção se insere na seara menos popular de um canal de streaming; parecido com as massas de bolo pronto que vemos estrear, é quase uma produção experimental no gênero. Trata-se, no entanto, apenas de um título com vida própria, que segue cartilha particular e não procura pela aprovação de ninguém, público ou crítica. 

Exatamente por isso mesmo está lançando na exata metade do ano, sem qualquer pretensão que teriam biografias de Elvis Presley, Aretha Franklin, Bob Marley e seja lá mais quem for. Beauty é uma jovem promissora, um pouco arrogante, decidida e cheia de si, mas é uma personagem de ficção. Diferente da comoção causada por Freddie Mercury diante de sua trajetória, Beauty veste seu próprio filme com sua personalidade independente e seu excesso de controle. Ao não dever nada pra ninguém, personagem e filme almejam a mesma força estética, o mesmo espaço unitário. Correndo o risco de não agradar ninguém ao querer agradar apenas a si, conseguimos vislumbrar essa aura única na forma como tudo foi construído em cena, estejamos nos referindo do que for por ali. 

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Mesmo o diretor Andrew Dosunmu exala propriedade ao capturar as imagens necessárias para contar a história dessa jovem prestes a se tornar mais um exemplo em sua área, sem querer abrir mão de qualquer nota que a torne especial. A montagem de Oriana Soddu se encarrega de colocar o filme em um padrão sem equiparação, dentro do gênero; há um desvelo em sua calma, em seu ritmo muito próprio, em suas elipses desconcertantes que não tornam a responder o que deixou no ar. São decisões muito bem equacionadas, que resultam em uma produção que parece um bicho estranho dentro do registro que pretende ocupar, deixando ainda mais evidente os lugares ocupados pelas biografias de hoje, engessados e preguiçosos, dispensando tudo o que fez de seus biografados únicos.

Os problemas de Beauty não se encontram nessas decisões criativas que o diferenciam como produto, mas como nada dessa diferenciação foi capaz de elevar o trabalho de roteiro ao elencar o que precisa estar em cena, e o que precisa ser dispensado sem qualquer explicação. A partir da metade do filme, a carreira da protagonista ganha um rumo, e toda sua família perde a função, chegando a sumir por blocos inteiros. Isso não é escalonado de maneira orgânica, apenas é assim; quando precisam aparecer, o roteiro volta a acessá-los e tudo segue de forma arbitrária, enfiando e tirando personagens de cena. Ao encaixar, por exemplo, o último personagem relevante na produção – e que só tem duas cenas – entendemos qual o lugar que está sendo acessado, mas a forma subdesenvolvida com que isso é apresentado realça esse e os outros problemas do filme, em abordagens afins. 

Além disso, Gracie Marie Bradley não tem a força suficiente para viver algo do tamanho que Beauty é descrita. Ao seu redor, todos a engolem – ok quando falamos de Niecy Nash (de Olhos que Condenam), Giancarlo Esposito (de Breaking Bad e Better Call Saul) ou Sharon Stone, um trio que verdadeiramente faz a diferença a cada cena em que aparecem. Mas mesmo Aleyse Shannon se superlativa ao seu lado, revelando suas carências. Com a opção estética de não revelar o talento de sua protagonista, o espectador claramente fica à mercê do que ouve falar. É uma decisão arriscada negar ao público uma voz tão decantada como primordial, mas esse nem é o grande problema de Beauty, que, apesar de tudo, merece ser descoberto por tentar ser tão livre quanto gostaria. 

Um grande momento
Pai e filha no hospital

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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