Crítica | CinemaDestaque

Uma Prova de Coragem

Um homem (branco) e seu sonho

(Arthur the King, EUA, 2024)
Nota  
  • Gênero: Aventura
  • Direção: Simon Cellan Jones
  • Roteiro: Michael Brandt
  • Elenco: Mark Wahlberg, Simu Liu, Juliet Rylance, Nathalie Emmanuel, Ali Suliman, Rob Collins, Paul Guilfoyle
  • Duração: 101 minutos

Todo filme, por mais modesto que seja, por menores que sejam suas intenções, por mais simples que seja seu alcance e mensagem, existe para além dessa impressão inicial. Muitas vezes, o crítico não descobre o que está além da aparência, algumas outras tantas a produção não consegue se fazer alcançar mesmo. Ainda assim, um título tão pequenino como Uma Prova de Coragem consegue criar comunicação com uma análise menos rasa a respeito de sua intencionalidade. Com tantos personagens masculinos perdidos, e com um protagonista que segue em busca de um caminho, não é difícil tangenciar as entrelinhas do filme que está estreando essa semana nos cinemas, que passam ao largo da superfície edulcorada da trajetória de seus tipos. 

Com 35 anos de experiência, o diretor Simon Cellan Jones dirigiu muito poucos filmes em sua trajetória, sendo que o mais recente antes desse, Plano em Família, foi também protagonizado por Mark Wahlberg. Aqui, Mikael Lindnord transformou uma história verídica acontecida com ele mesmo em livro, cuja adaptação de Michael Brandt rende esse Uma Prova de Coragem, que parece seguir essa intenção dos últimos anos de seu astro em criar uma persona “belo, recatado e do lar”. Independente dessa escolha que coaduna com o rigor com o que o astro prega hoje, o título constroi, em paralelo à inocente e tradicional história do encontro entre um homem desesperado e um cachorro indomável, uma crítica pouco disfarçada sobre a masculinidade. Ou uma bela, recatada, do lar e branca. 

Não exatamente a toxicidade que seria comumente atrelada a algo passível de crítica, mas de uma espécie de passividade que se transforma em conforto, que se transforma em atraso. Através do protagonista de Uma Prova de Coragem, o filme (e talvez até seu autor) está nos levando a tentar observar como homens são seres tão superiores que a eles é dado todo o tempo do mundo para errar e acertar, e errar mais do que acertar. Michael é um corredor de aventura, modalidade esportiva que consiste em uma espécie parecida de triatlo de alto impacto, que dura mais de 24h e leva seus participantes a pedalar, correr por montanhas, talvez até chegar a escalar algumas, e remar. Apesar de ser um profissional de rendimento invejável, Michael nunca venceu uma competição e essa frustração o prostra profissionalmente. 

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O filme mostra essa dualidade de seu protagonista. De um lado, o homem com um sonho cada vez mais distante; de outro, o marido e pai que não consegue nem ser metade do que poderia por conta de uma realização que nunca aconteceu. Como trata-se de um homem branco, bem sucedido e com uma rede de apoio que parece inesgotável, todas as suas incontáveis tentativas parecem válidas, justas e possíveis de serem apoiadas. É quando vemos que Uma Prova de Coragem fala sobre o tão bem conhecido privilégio do homem branco que a historinha da amizade com o cachorrinho maltrapilho e a expiação de culpa que ele projeta no animal. A partir desse momento, não tem como começar a ver um filme diferente desse que está na nossa frente. 

Arthur, o pobre coitado que se mostra fiel a quem lhe deu almôndegas mesmo que para isso precise atravessar céu e terra, é um símbolo de uma certa subserviência que os menos favorecidos precisam encarnar para ter uma nesga do lugar ao sol. O protagonista canino de Uma Prova de Coragem não precisava ter passado por metade do que passou, mas o faz porque encontrou um amigo. Um dono. Alguém a quem possa servir, motivar e, quem sabe até, inspirar a melhorar como ser humano. É a cabeça que está trabalhando demais em uma produção que só queria ampliar o público de Marley & Eu, Free Willy e afins? Pode ser, e provavelmente Wahlberg, Jones, Brandt e companhia só queriam celebrar a estupidez humana; já era, meninos. 

No final do dia, Arthur é realmente um personagem incrível, uma dessas figuras que, mesmo tendo quatro patas, gostaríamos que passasse pela nossa vida. E Michael é um homem adulto, que poderia ter escolhido algo melhor para sustentar mulher e filha, mas ao invés disso, passou dos 40 anos e ainda está tentando bater no mesmo prego que ele não consegue encaixar. Uma Prova de Coragem nos faz suspirar com um cachorrinho da melhor qualidade, e deveria também nos fazer perceber o tanto de facilidades que temos na vida, sair da zona de conforto e encarar a realidade adulta. Os sonhos são para quem pode ter, os Michaels da vida; nós só somos mais um bando de Arthurs.

Um grande momento

Suspensos

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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