Crítica | Outras metragens

O Crime da Penha

Sem humanos

(O Crime da Penha, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Daniel Souza Ferreira e Dudu Marella
  • Roteiro: Daniel Souza Ferreira, Dudu Marella
  • Duração: 6 minutos

O Cine PE 2022 foi muito propenso a animações em curta metragem, com ideias muito elaboradas em realidades e universos organizados para lugares surpreendentes. Um desses títulos foi O Crime da Penha, que mesmo dentro do formato já conhecido, conseguiu ir a espaços ainda não muito conhecidos em sua área. O impacto de sua exibição na plateia foi imediato, e o filme saiu da noite de exibição especial temático-musical como um produto dos mais ‘sui generis’. Não foi somente isso que jogou luz sobre o filme, mas principalmente o grupo de escolhas feitas pela sua dupla de diretores, Daniel Souza Ferreira e Dudu Marella, que sensibilizaram o formato. 

A produção é feita de imagens, a maior parte estáticas, partindo da ideias dos tradicionais ‘tableau vivants’, só que de bonecos. É algo que se difere da maior parte das coisas produzidas no formato animação, e que aqui estabelece uma dinâmica muito particular com o que é mostrado. A ideia de filmar esses ‘quadros vivos’ (e que são tudo aqui, menos vivos – ironia das ironias) para traduzir uma narrativa clássica e trágica é tão peculiar quanto um acerto de realização. Isso tudo porque a própria natureza do roteiro – e dos eventos por si só – já comungam uma intencionalidade que é potencializada pela imagem travada, desprovida de emoção, a princípio. 

O filme mostra uma história real acontecida no período escravocrata brasileiro, e que pode ter sido um dos muitos acontecidos a exigir o fim do genocídio provocado pela escravidão no país. Um delegado abolicionista é perseguido, torturado e, por fim, assassinado pelos poderosos da região dentro da própria casa, e tudo isso é encenado sem diálogos e quase sem movimentação de seus personagens. Tudo que parece se mover é externo, não se trata de impulso dos personagens, mas das coisas que os cercam. Quase como a explicitar ainda mais o caráter desprovido de humanidade da situação, O Crime da Penha estabelece novas camadas de artificialidade na narrativa a um recorte que pode ter sido banal à época, considerado prosaico e provavelmente normal – ou seja, nenhum artifício.

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Além de todos esses dados estéticos, o filme não se contenta com tantos e injeta musical ao molho. Logo, temos essa tragédia absurda sendo tratada com a melancolia necessária pelas composições escritas especialmente para o filme, que o colocam em lugar ainda mais delicado. Nesse sentido, O Crime da Penha talvez tenha sido um dos trabalhos mais arriscados do Cine PE deste ano, porque é uma produção que tem consciência de que suas escolhas provocam estranheza e até algum deboche, mas seus autores confiam no resultado apresentado. É um caldeirão de características disparatadas, mas que acabam não apenas comunicando muito bem, como o fazem às margens da excelência. 

Toda a intensidade do projeto passa por essa expressividade cênica demarcada com afinco pelo que é captado. São bonecos sem rosto em quadros sem movimento, com uma música interiorana embalando as cenas e transformando tudo em um material ‘sui generis’ em tudo a que se propõe, marcando a maturidade de um projeto que poderia ser encarado como uma brincadeira autoral. Não. O Crime da Penha leva a Ferreira e Marella um exemplo de sofisticação muito profunda, mas que tenta uma comunicação com o público médio, e isso por si só já seria surpreendente. Com um campo de ideias que parece em expansão, seus diretores conseguem representar tamanha monstruosidade com uma sensibilidade de autor que nunca deixa de se manifestar, ainda assim sem apagar a excelência emocional. 

Um grande momento

O corpo do delegado

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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