Crítica | Streaming e VoD

O Golpista do Tinder

O lugar da vítima

(The Tinder Swindler, GBR, 2023)

Entre muitas deslizadas para a direita e para a esquerda, o match. Em um mundo onde a interação torna-se cada vez mais difícil e rara, são espécies de catálogos humanos que servem de pontos de encontro para o começo de relacionamentos. A carência, a fantasia e o ideal do amor romântico seguem os mesmos, mas a possibilidade de criar novas personas é infinita. E os golpistas, que sempre existiram, mas agora têm uma ferramenta tão poderosa, deixaram de ter limites. Simon Leviev percebeu isso, e fez tudo para que Cecilie Fjellhoy, Pernilla Sjoholm e Ayleen Charlotte não percebessem. Elas foram as vítimas que expuseram seu esquema e o levaram à prisão, e são as personagens do novo documentário true crime da Netflix, O Golpista do Tinder.

Dirigido por Felicity Morris, produtora de séries documentais de sucesso como Women in Prison e Don’t F**k With Cats, o longa não foge do formato tradicional de entrevistas, algumas simulações e resgate de material de arquivo, mesmo que ele venha com reelaboração gráfica. Porém, vai além da simples narração dos eventos. O interesse em reconstruir os passos de Leviev, definir seu modus operandi e estabelecer seus efeitos e consequências na vida daquelas mulheres, além da própria investigação, está em grande parte do filme, mas há um interesse em compreender e dar voz a cada uma delas, em especial Fjellhoy.

O Golpista do Tinder
Netflix

A finlandesa é o fio condutor do filme e não apenas como aquela que possibilita toda a construção do próximo golpe e une outras vítimas, mas como a que humaniza os eventos. É muito comum que em qualquer crime contra mulheres as vítimas sejam culpabilizadas e isso é ainda mais intenso em crimes contra o patrimônio. Em casos como esses, onde mulheres são extorquidas por golpistas, o veredito oscila em duas definições: burra e aproveitadora. Fjellhoy foi chamada de ambos quando resolveu se expor para que nenhuma outra mulher passasse pelo que passou, e o documentário mostra isso. Quando dá voz a ela, busca o que a fez chegar até ali.

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“Eu já sabia de tudo, mas eu ainda tinha aquele conto de fadas no meu celular. Dentro de mim eu ainda o amava.”

Logo no início de seu depoimento Fjellhoy se coloca em um lugar que é muito conhecido de muitas de nós, aquele afirmado e reafirmado por gerações, no jeito mais lindo e encantado de ser. O ideal do amor romântico é uma pressão — ou opressão — poderosa e é preciso muito tempo para começar a lidar com ele de uma outra forma depois de tanta exposição. O fato de ser A Bela e a Fera sua história da Disney favorita é muito significativo. E há toda uma rede de outras questões individuais e humanas que constituem cada existência, da carência à autoestima, da segurança à vontade de constituir família, que vai definir os motivos de uma história. Fato é que fica muito claro ali que aquela mulher acreditou naquela fantasia porque ela foi feita real para ela, não só por ela, mas pelo outro.

O Golpista do Tinder
Netflix

Já Simon Leviev conhecemos por meio das personas criadas e na inconstância que surge com a não concretização de seus desejos. O Golpista do Tinder obviamente assume um lado, até porque diante dos fatos é difícil não fazê-lo, deixando espaço para que o próprio falasse a seu favor, mesmo que ele tenha declinado da oportunidade. Com um roteiro inteligente, consegue ir além da própria estrutura convencional ao costurar os caminhos que investiga, principalmente quando une as histórias e parte para a apuração jornalística da primeira grande matéria sobre o caso, com direito a cenas de ação e tudo mais, daquele jeito que os documentários de crime adoram. E segue bem pelo modo como arranja os fatos, ainda que chegue onde não deseja. É um documentário, afinal de contas. Não poderia chegar a outro lugar em uma sociedade patriarcal como a nossa.

Golpes e golpistas como o documentado não são difíceis de se encontrar por aí. Seja por aplicativos de namoro ou redes sociais, falsos herdeiros, negociantes de arte, donos de corretoras de investimento, soldados em guerra e viúvos carentes aparecem sempre para fazer suas próximas vítimas. Talvez não tão cinematográficos como Simon Leviev, é muito bom que exista um O Golpista do Tinder para que se veja e se repense o modo como a sociedade encara essa relação entre predadores e vítimas. E para alertar o quão nocivas são as bases em que estabelecemos a busca para uma felicidade que deveria estar em outro lugar, não no outro.

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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