Crítica | Cinema

O Grande Mauricinho

De volta ao conto

(The Amazing Maurice, GBR, ALE, 2023)
Nota  

“Os contos de fadas originais são os melhores, são os mais brutais”. Quem fala isso é Marina Grima, a narradora e coprotagonista de sobrenome sugestivo da animação O Grande Mauricinho, adaptação para os cinemas da obra clássica de Terry Pratchett que reimagina a história do Flautista de Hamelin. Bom, realmente o que vem antes dos contos de fadas que Andersen, os Grimm e até mesmo o mais cru Perrault levaram aos livros é sempre muito terrível. Mas, se existe um conto folclórico – o flautista não está nesse universo das fadas – que é assombroso mesmo depois de “aliviado”, é este. Contrariado por não receber o pagamento após acabar com uma infestação de ratos na cidade de Hamelin, o músico resolve se vingar encantando todas as crianças do lugar e trancando-as para sempre em uma caverna. Simples assim. Para ficar mais horrível, por trás do mito, está o triste evento real do desaparecimento nunca solucionado de mais de uma centena de crianças da cidade, que existe de verdade e fica na Alemanha.

Pratchett volta ao terrível conto e o transforma. Aproveitando o personagem principal, que ganha um copycat, podemos pensar até que ele se divide em dois se separarmos execução de negociação, e une outros elementos folclóricos e fantásticos criando “O Fabuloso Maurício e seus Roedores Letrados”, talvez o mais infantil de sua série “Discworld”. O filme, dirigido por Toby Genkel, tenta ser bastante fiel ao livro, com personagens cativantes e uma trama que, apesar de simples, está recheada de contradições e surpresas, e é bem sucedido, embora nem tudo funcione, como a tentativa de intercalar a aventura de Mauricinho e sua turma às do Sr. Coelhito em uma trama externa. Há ainda Marina, criatura tão complexa que, amante dos livros e dos contos de fadas, está a todo momentos explicando os elementos de uma construção narrativa e tentando associá-los à sua própria jornada, em forma de justificativa ou expectativa. O jogo funciona na maior parte do tempo, tem ótimos momentos, como quando tenta falar de sentimentos com Kinho, mas acaba tirando a força da personagem.

O Grande Mauricinho
Cortesia Sundance Institute

Você não é bonito para ser o par romântico, não é engraçado para ser o alívio cômico, vai ver você é o amigo simpático que serve para ajudar a resolver os meus problemas éticos.

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Esta percepção, porém, é a do pessoal mais velho que assiste a O Grande Mauricinho. Os pequenos talvez tenham uma impressão ainda mais aborrecida dela nesses momentos. Mas eles não são maioria no filme, e há bastante habilidade no contar a história de pequena cidade Panqueca Estragada, que encontra picaretas muito mais picaretas do que Mauricinho e um vilão horroroso e divertido com seus capangas. Além de, é óbvio, a trajetória de descontrução do estereótipo de felinos, já vista antes no cinema – que pode proveitar aqui a rebarba do sucesso recente de bilheteria do ser da mesma espécie de Gato de Botas 2: O Último Pedido – e a transformação de Kinho em herói.

O Clã, nome da turma de roedores letrados, com destaque para Senhor Feijão, Pêssegos, Bronzeado e o divertido Sardinha é uma atração à parte, com muitas passagens de ação e divagações sobre a vida. É na dinâmica entre eles e na relação com outros personagens que se discutem os pontos mais importantes, como a importância de uma comunidade, identificação, frustração e mesmo a lógica da fé e da crença. Além disso, das táticas de invasão à briga de rinha, são eles, sem dúvida, que vão garantir os momentos de maior diversão às crianças.

O Grande Mauricinho
Cortesia Sundance Institute

Quem assina o roteiro de O Grande Mauricinho é Terry Rossio, alguém que está confortável nessa apropriação de contos de fadas e, inclusive já foi indicado ao Oscar por isso com Shrek. Essa comunhão com o trabalho de Pratchett, que sempre foi percebida na franquia do gigante ogro verde, casa muito bem com o trabalho do roteirista. Agora direta, demonstra que ele era a melhor pessoa para trazer a intenção do escritor à trama. A animação, tecnicamente, também não faz feio. Misturando técnicas clássicas de animação e elementos em 3D, ainda assimila muito da linguagem cinematográfica em movimentos de câmera e escolha de planos, com passagens em primeira pessoa, rotações, inversões e cortes rápidos. 

No final das contas, a história assume rumos diferentes daquela em que se baseia, mas não perde a sua essência, com o encontro com o Flautista de Hamelin se reconfigurando novamente. Esse, em suma, é mesmo o destino de narrativas mitológicas, dos contos de fadas e dos contos populares. O Grande Mauricinho é um filme que, apesar de ter os seus tropeços, funciona bem. Com personagens marcantes, muita ação, aventura e posições claras sobre certas situações, diverte e deixa a sua mensagem.

Um grande momento
“Mas ele está dormindo”

[Sundance Film Festival 2023]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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