Starring Jerry as Himself

Jerry Liu era um senhor que levava sua aposentadoria de forma pacata. Pai de três filhos já adultos, separado e sozinho, vivia o sua rotina sem emoção esperando por eventos esporádicos. Isso até receber uma ligação que o deixou realmente apavorado. A polícia chinesa tinha todos os seus dados e estava desconfiada de que ele estava envolvido em um esquema de lavagem de dinheiro, agora ele teria que ajudar numa investigação ou seu nome estaria sujo para sempre e ele seria deportado.

Parece absurdo, mas não é. A história aconteceu com o pai de Jonathan Hsu, produtor que resolveu transformar tudo em um híbrido de documentário e ficção, Starring Jerry as Himself, dirigido por Law Chen e escrito pelo próprio Jerry. O filme que “salvou a vida dele”, segundo as palavras de Kathy Hsu, sua ex-mulher. Isso porque a ligação não era bem essa, seu resultado foi muito além do que se esperava e o que levou até suas consequências tinha muitas outras questões envolvidas.

O longa apresenta seus personagens e suas realidades. A família, suas casas e a diferença entre os estilos de vida, da opulência e ostentação da mãe à falta de espaço e bagunça do pai. Caminhamos pelos cômodos das duas casas tão diferentes sem muita curiosidade, observando as discrepâncias entre as personalidades, reparando no afeto e pensando estar diante de mais um documentário tradicional familiar como tantos outros já feitos. Até que no encontro de todos, na reunião marcarda em um restaurante, tudo se transforma.

“Eu recebi uma ligação do governo chinês”. Aquele longa tão comum, filmando pessoas igualmente comuns parte inesperadamente para a reencenação. Jerry deixa de ser o documentado e passa a ser o ator, e se empenha na função. Conversa com os policiais, vividos por Haosong Yang e Fang Du, em suas estações de trabalho; vai cumprir suas missões atrapalhadas; imagina seus atos heroicos contra o gerente do banco interpretado por Nick Bailey e, embora apavorado com a missão, se sente importante com tudo aquilo que está fazendo.

Ao mesmo tempo em que acompanha os atos do protagonista, Starring Jerry as Himself acompanha a vida dos irmãos Jesse, Jonathan, Joshua e de sua mãe em atividades corriqueiras, intercalando as relações. A vida segue normalmente enquanto Jerry assume sua missão de espionagem, causando um estranhamento que é comentado, mas menos considerado do que deveria. E trazendo o incômodo, porque é nesse ponto que a solidão e o afastamento, por mais que ali estejam tão claros o amor e o afeto, falam tão alto no filme.

Porque não demora muito para que se entenda onde tudo aquilo vai levar. São passos conhecidos de um caminho que Jerry trilhou, mas, assim como ele, tantos outros. Isso é falado no longa, inclusive. O tempo vai passando, as relações vão se estreitando, as situações vão se tornando mais evidentes e o medo da vergonha se iguala à certeza da veracidade. Não há mais nada que possa ser feito depois que envolvimento e crença ultrapassaram certo ponto.

A gente se diverte com Jerry e sofre junto com ele por sua ingenuidade, e é curioso como Law Chen transita entre esses dois sentimentos ao fazer com que Starring Jerry as Himself seja uma comédia, um drama e um filme de espionagem sem deixar de ser um documentário. Mais do que isso, deixa uma reflexão sobre o modo como nos afastamos daqueles que estiveram sempre ao nosso lado, ignorando sinais e dando pouca atenção a eles. Trazendo a questão da solidão na velhice de uma maneira muito tocante e efetiva, sem ser pesado ou exagerado no tom, mas deixando o coração apertado.

Um grande momento
“Foi mais fácil para mim porque eu vivia sozinho”

[Slandance Film Festival 2023]