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Godzilla vs Kong

Deuses e Monstros

(Godzilla vs. Kong, EUA, AUS, CAN, IND, 2021)
Nota  
  • Gênero: Ficção Científica
  • Direção: Adam Wingard
  • Roteiro: Terry Rossio, Michael Dougherty, Zach Shields, Eric Pearson, Borenstein
  • Elenco: Alexander Skarsgård, Millie Bobby Brown, Rebecca Hall, Brian Tyree Henry, Shun Oguri, Eiza González, Julian Dennison, Lance Reddick, Kyle Chandler, Demián Bichir
  • Duração: 113 minutos

É muito bom perceber que ainda residem resquícios de coragem no cinema blockbuster americano, um lugar onde a liberdade é cada vez mais rara. Adam Wingard, cria de um cinema independente na acepção mais literal da palavra, mas absolutamente ligado ao cinema de gênero, desbravando com ousadia o terreno da criatividade diante do artifício e sendo constantemente ligado ao “vulgarismo”, termo cunhado por Andrew Tracy para definir cineastas que exaltam gênero considerados menores com autoralidade. Que um cineasta como esse tenha chegado a Godzilla vs Kong é uma vitória ainda maior para um recorte de Hollywood cada vez mais industrial e sem identidade.

Ao longo de sua carreira, em filmes como O Hóspede, Death Note e Você é o Próximo, Wingard demonstrou predileção e proximidade com a cultura pop mais explícita, adaptando mangás e reconfigurando uma linguagem cinematográfica menos óbvia, mas abraçando a efervescência sem reservas.Pela primeira vez a bordo de um projeto milionário – 200 milhões – e de porte imenso, o diretor se viu ameaçado pela pandemia, mas assustadoramente levou a melhor, sendo o primeiro longa metragem americano em mais de um ano (especificamente, desde Sonic) a alcançar sucesso global e local; o filme caminha para os 500 milhões arrecadados, e só nos EUA mais de 100 parecem garantidos.

Godzilla vs Kong

A resposta amplamente positiva a um cinema tão assumidamente artificial, quase agressivo em sua narrativa histérica e tresloucada, é um sopro de vitalidade a uma fatia do mercado que chafurda na mesmice a passos largos, e o muito jovem diretor desbrava essa seara armando um picadeiro de luzes e sons hipnóticos. Com um roteiro escrito a dez mãos que quase só serve como base para o entendimento da criação do caleidoscópio de imagens, não demora para percebermos que o trabalho imagético do filme é autônomo a sua narrativa e funciona apenas para interligar suas ações, essas sim que merecem atenção que o filme não decepciona em nos surpreender.

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Esteticamente, Godzilla vs Kong é uma experiência embasbacante, de ver segurando o queixo. Fica clara a preocupação de Wingard com os mínimos detalhes visuais, de pequenos focos de incêndio no fundo de cena até animais minúsculos que correm por trás dos protagonistas. Não há descuido visual no filme, cuja preocupação é mais do que apenas entreter, mas de impressionar continuamente. Com profundo detalhamento em seu design de produção (cuja equipe inclui Owen Paterson, de Matrix e V de Vingança), a mise-en-scene impressiona também porque é um trabalho convidativo ao olhar, sedutor em absoluto e criador de um material rico para filmes feitos em larga escala, que aqui soa como quase artesanal.

Godzilla vs Kong

Outro aspecto caro à obra do diretor é o seu refinamento com suas luzes e lentes. Com fotografia a cargo de Ben Seresin, o profissional evolui dos trabalhos com Michael Bay (especialmente Transformers: A Vingança dos Derrotados) para essa parceria onde justamente as linhas parecem bem definidas, sem borrões que baguncem a compreensão das cenas – aqui, o que vemos é o oposto, um filme limpo na sua confecção. A predileção pelo neon é responsável por momentos espetaculares, como a luta entre os personagens título em uma Tóquio assumidamente fake; ironia suprema, seu tratamento com o trágico é muito mais real e humano do que a máquina hollywoodiana geralmente produz, em filmes literalmente feios como Batman vs Superman, onde a gravidade dos eventos parece desconhecida.

Como Wingard propõe uma fábula colorida e vibrante, o resultado de sua destruição em massa acaba sendo realçado em contraponto, criando uma dicotomia inesperada. Seu viés onírico não impede o filme de parecer sempre grave, talvez porque os massacres parecem sempre tão sinuosos. Com uma aquarela fascinante em mãos, tanto quando filma o maravilhamento quanto quando filma a destruição em massa, a produção ainda capta seus protagonistas com expressividade e rigor, como quando Godzilla se despede da produção, em primeiro plano e observado pelo seu rival.

Godzilla vs Kong

O que o diretor compõe também, além desse produto singular dentro de Hollywood, são planos que acabam por referenciar obras tão díspares quanto ‘E.T.’ de Steven Spielberg (em cena-símbolo recortada aqui no texto) e ‘A Criação de Adão’ de Michelangelo imortalizada no teto da Capela Sistina, repaginando a própria ideia da obra clássica ao espelhar criador e criatura sendo a mesma pessoa, como se os deuses se auto criassem, como faz Kong ao chegar na Terra Oca. Todo esse trabalho de elaboração pictórica contribui para o movimento de entendimento do movimento ‘vulgar’ dentro do cinema hoje, que não está exclusivamente na exaltação de gêneros diminuídos, mas de fazê-lo ressignificando seus códigos e incluindo grafismos de clara sofisticação.

Essa citada sequência da chegada do titã ao centro do planeta contribui, como todo o filme, para o acréscimo de ‘frames’ que se assemelham (olha só!) a pinturas, que Wingard através de seus planos amplia o nosso olhar sobre a relação entre seus protagonistas, colocando-os finalmente na posição chave de real importância da obra, sem se ater aos humanos, aqui desautorizados de promover empatia ao espectador. Essas imagens fazem parte do coletivo de momentos que o cineasta prepara para rechear a iconografia da sua própria filmografia.

É exagero dizer que, além de tudo, Godzilla vs Kong é um filme que ri da cara do espectador, ao propagar o fim do que é artificial justamente em uma produção tão à vontade com seus valores artificiais? Essa é a cereja de um bolo cozinhado por um grande chef, que não deixa pontas estéticas soltas e tenta amarrar até o arremedo de história(s) que foi dada pra ele filmar; sem sutileza, o filme utiliza seus humanos e sua “trama” como um pretexto não apenas para que seus astros brilhem, mas que o palco onde eles estarão seja o mais atraente possível, sem roubar espaço dos protagonistas mas contribuindo para que sua passagem seja difícil de esquecer.

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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