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O Rebanho

“Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo dai-nos a paz”

(The Other Lamb, IRL, BEL, EUA, 2019)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Malgorzata Szumowska
  • Roteiro: Catherine Smyth-McMullen
  • Elenco: Raffey Cassidy, Michiel Huisman, Denise Gough, Ailbhe Cowley, Eve Connolly, Isabelle Connolly, Jane Herbert, Aislín McGuckin, Kelly Campbell, Eva Mullen
  • Duração: 96 minutos

“Uma vez havia uma mulher, uma mulher selvagem. Feita de luar e dentes. Ela caçava e a natureza falava com ela, contava histórias, a dizia onde ir. A dizia para ser livre”

Arrebanhando a atenção e desconcertando olhares a partir da presença hipnótica de Raffey Cassidy (que se parece muito com aquele que dá vida ao bruxo mais famoso do cinema, Daniel Radcliffe), O Rebanho estreia com destaque no Telecine essa semana.

Um corpo etéreo flutua na água, leve como a lã das ovelhas em close sob o sol meio nublado. Aqui não entram offs ostensivos como os de June em O Conto da Aia ou a construção de suspense de A Bruxa, mas essas duas obras audiovisuais estão estilistica e tematicamente presentes nesse filme de Malgorzata Szumowska. São as mulheres vivendo sob o jugo do patriarcado, achando meios de se auto governar cultuando a natureza feminina, sua força e poder transformador que sobressaem em múltiplas camadas.

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O Rebanho

Catherine S. McMullen constrói climas e a progressão dramática na medida em seu roteiro cheio de nuances, não ditos e revelações sempre cifradas das vidas daquelas mulheres aprisionadas e dos ritos do pastor. Em especial os diálogos de Selah (Cassidy) com Sarah (Denise Gough), a esposa amaldiçoada pela “vaidade” ou por ser impura como Eva — que vive numa cabana e come sobras –, são muito bem construídos entre cumplicidade e desavenças.

A potência de criação (Cy) e destruição (Kali/Durga) do feminino está expressa em várias acepções do imagético que constitui O Rebanho. A cineasta polaca não esconde nem economiza nos símbolos cristãos e pagãos de dominação masculina mas codifica-os para apropriadas inversões pictóricas em cenas e quadros na floresta (manifestações da psique de Selah) pensados em minúcias para embevecer.

“Só pode haver um carneiro no rebanho”

Selah representa aqui a ovelha negra, que desgarrou-se para enfrentar o Carneiro. O rito de batismo das filhas tornadas esposas tem tanto simbolismo quanto mergulhar as águas e não mais voltar a superfície — a Danae de Klimt ou Ofélia shakespeariana afogada. Mulheres flutuando na consciência humana, perfeitas. Que transcendem.

O Rebanho

O pastor, vivido por Michel Huisman (de A Mansão Hill) é, ao mesmo tempo, muito sedutor e intimidante. Ele “dá sua graça” para as eleitas esposas, algumas tão jovens quanto as filhas e também castiga aquelas que considera impuras — que simplesmente resolveram não seguir suas ordens.

“Nós veremos quando o seu sangue descer”

Em O Rebanho, as filhas, que assim que se tornam mulheres, são fecundadas pelo pastor, não vestem o vermelho das aias mas sim o azul das esposas da obra de Margaret Atwood. Porém, as esposas do pastor, usam púrpura e vermelho rubi, simbolizando o sangue que desceu e as tornou aptas a serem mães. E o quão perturbador é que as filhas fecundadas sejam preparadas para substituir as esposas-mães?

“Ó meu pastor venha até mim e me preencha” é a súplica que elas lamuriam em uma cena angustiante no local onde se dá os cultos, um quadrado no meio da floresta, tecido em seus limites geográficos com novelos de lã. Os gritos e choros remetem àquela famosa cena de Midsommar.

Se o homem dá “abrigo, filhas, irmandade e vida” nada mais justo do que ele se alimente da carne das mulheres para saciar seus desejos e perpetuar sua espécie. Longe de ser um culto feminino, a seita do pastor bonitão se assemelha a tantos casos bizarros como de Osho, Charles Manson ou tantos outros como as seitas poligâmicas que são dissidências de cultos mórmons e volta e meia surgem nos noticiários.

Bíblico, sim, O Rebanho ainda regurgita elementos da cultura pop que o tornam uma experiência complexa de arthouse e substância como a Barbie de alguma das filhas menores que serve como um espantalho, usando o mesmo vestido recatado azul e guardando o imaculado lar.

Selah deitada na relva, no alto do descampado com a câmera aérea se afastando lentamente para voltar com um close up nela e outro na ovelha recém-parida, no filhote morto e no sangue escorrendo do meio das pernas da menina, trêmula. O grito gutural sai silencioso. É gore e é lindo.

O Rebanho

Uma contraparte de Black Phillip (o grande antagonista de A Bruxa) está no carneiro branco de face matizada de preto que assume posição de ataque perante a menina. Ele será o ingrediente para o clímax não surpreendente mas satisfatório arquitetado por Szumowska.

O Rebanho versa sobre as ovelhas, aquelas que não foram necessariamente tocadas pelo cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo, mas que buscam algum tipo de paz, enquanto puras, após sofrer tantos sortilégios na forma de abusos físicos e psicológicos.

Um grande momento
Vários, como a do presságio no tronco da árvore concretizado

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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