- Gênero: Documentário
- Direção: Fernando Segtowick
- Roteiro: Fernando Segtowick
- Duração: 79 minutos
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Represando as lágrimas, um homem passeia com seu barco pelo lago de Tucuruí. Ele leva viajantes, transeuntes – uma equipe de filmagem. Na tradição do cinema verité, mas mergulhando mais fundo no lago onde, na superfície, só se vê calma e letargia, o cineasta paraense Fernando Segtowick constitui o filme que o projetou até a Berlinale. Selecionado para a prestigiosa mostra Panorama, O Reflexo do Lago chega até as audiências brasileiras e amazônicas por meio do festival Olhar de Cinema.
Um dos grandes marcos do desenvolvimentismo da era ditatorial, com uma capacidade instalada de mais de 8.000 mw a hidrelétrica de Tucuruí é responsável por abastecer todo o Pará, o Maranhão e o Tocantins, além de completar a demanda para o resto do país com vertedouros capazes de conter mais de 110 mil metros cúbicos de água, isso sem contar com a ampliação da capacidade advinda da construção da terceira casa de força que está em curso. O filme parte da pesquisa e vivência da mestre em Educação Agrícola Edilene Portilho que não só divide o mesmo sobrenome que dois personagens do documentário, Dona Rosa e Seu Manduca, como é a própria originária de um dos ilhéus banhados pelo Rio Caraípe. A mesma densa realidade já tendo sido retratada pela grande fotógrafa mineira mas que é paraense de coração, Paula Sampaio, no livro e nos vídeos da série Lago do Esquecimento.
“Tu acha que vai ser ‘pá pum’ né? Chegou, filmou”, questiona o morador, se rindo do cineasta que fala que a ideia não é essa. Na cidade e nas ilhas que rodeiam o lago banhado pelo Rio Tocantins, Fernando e sua equipe diminuta caem mais para os lados banhados pelo rio Caraípe, formados por vilas pesqueiras e de monocultores.
A maneira com que Fernando Segtowick enquadra e encena com seus personagens, filma suas interações e se coloca no lugar de alguém que vivenciou aquela realidade, de outro patamar (ele trabalhou para uma multinacional que atuava na região), são estratégias acertadas para aproximar o público, especialmente o estrangeiro à Amazônia. A identificação simbólica com experiências cinematográficas brasileiras outras se solidifica em Carro de Bois, obra seminal de Humberto Mauro que trata do valor do trabalho ao focar na tração animal e sua importância para uma Brasil ainda em formação ou mesmo no esplendor irretocável, melancólico, de Limite com toda a sua inventividade um tanto surrealista.
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante
Caetano canta em “Transa”, essa canção sobre a Bahia mas tanto podia ser sobre a região amazônica de 40 anos atrás e que hoje vive das mazelas de tanta maldade imposta pelo progresso. O Reflexo do Lago vai mirando num estilo de documentário extremamente autoral, invencionando a experiência íntima com aquilo que existe de mais universal que é a necessidade de ser livre e feliz no seu lugar. Lucas Coelho mixa o reclame do rádio, o cinejornal, os offs dos personagens a trilha idílica e fantasmagórica. Dá a ambiência necessária para estarmos todos, serpenteando por entre os caminhos do lago ou do igapó. Com imagens áreas que reforçam o desalento do preto e branco, expondo a imensidão da floresta, dos rios e do lago da hidrelétrica – arruinados pela promessa do progresso – se soma harmoniosamente a um desenho de som sensorial e que se demora, capturando as nuances sonoras inclusive do extracampo, desembocando numa decupagem onde o filme de arquivo servindo como artefato para estreitar a comunicação com a comunidade.
“Tudo era floresta, a floresta perdida, virou em rio!” E corta para do outro lado da margem do lago, um cemitério de arvores…. Muitas castanheiras ora imponentes, jazendo no solo. Não a toa lê-se nos créditos quase que uma assinatura trina de O Reflexo do Lago, creditada em igual importância a Segtowick, o fotógrafo Thiago Pelaes e o montador Frederico Benevides.
Como numa pesquisa para a feitura do filme, o cineasta assiste no notebook, à noite, no meio do mato, sozinho, o especialista falar sobre o desastroso e perverso projeto da hidrelétrica. Os closes e os planos mais contemplativos, que passeiam pelos rostos e expressões corporais dos moradores de Tucuruí dizem muito, expressam dor. incapacidade. O lamento de ter a vida alterada sem poder intervir.
Econômico na sua constituição fílmica mas nem por isso menos belo, imponente e triste, O Reflexo do Lago foca no componente humano; nas vidas que foram aterradas, levadas para o fundo do lago, na teima em resistir mesmo perante o avanço irrefreável do capital. Onde não há luz que seja as que queimam os lampiões à óleo, onde a floresta arde (seja na Amazônia ou no Pantanal) e o socorro não chega, homens e mulheres que vivem margeando a hidrelétrica enxergam uma fagulha de esperança na simples fala, no expor da realidade para que as gerações vindouras tomem conhecimento e busquem por mudança.
“Documentário é isso né? O cara não tava no dia dele” – dessa reflexão sobre o próprio fazer documental, se extrai a importância e o legado da defesa de um território que é de todos nós, sobre o qual o mundo tanto debate mas que de fato, pouco enxerga. Que os povos da floresta encontrem cada vez mais plateia, público, que ganhem olhos e ouvidos para aquela que talvez seja a causa mais urgente perante um governo fascista que quer lotear a Amazônia e vender ao capital estrangeiro: a existência.
Um grande momento
O rio que vira floresta no chão, a queimada que transmuta na água morta do lago.