Em 1973, chegava aos cinemas Os Homens Que Tive, de Tereza Trautman. Era o primeiro longa de uma mulher de ficção a estrear nos cinemas em muito tempo e com uma perpectiva totalmente feminina e feminista. Isso não passaria incólume pela ditadura militar, pela ditadura militar. Apesar da liberação, com poucas semanas de exibição e pouco antes de estrear em Belo Horizonte, o filme foi interditado e teve todas as cópias recolhidas. A justificativa: era amoral e “um libelo contra a instituição do casamento”.
O filme apresenta a história de Pity, uma mulher que vive livremente sua sexualidade. Ela é casada com Dôde, com quem mantém uma relação poliamorosa, já que ele também tem uma namorada, e ainda se relaciona com seu amante, Sílvio. Os três chegam a morar juntos em um ambiente leve e descontraído, até o momento em que Pity conhece Peter, antigo amigo de seu marido, com quem começa a trabalhar em um filme e por quem acaba se apaixonando.
A narrativa é complexa, especialmente considerando-se a época de lançamento, ao desafiar os padrões estabelecidos como aceitáveis. O filme passa pela censura, o que já é uma vitória, ainda mais por ser dirigido por uma jovem mulher de 22 anos em um meio predominantemente masculino. A história mistura uma atmosfera hippie, politizada e comunitária, expressa na república de artistas que parte em viagem pela América do Sul, transmitindo mensagens que não foram plenamente percebidas.
O grande foco do filme é o papel da mulher na sociedade. Pity rompe com séculos de submissão, desafiando a lógica de que apenas os homens têm o direito de fazer escolhas livres. No cinema da época, a mulher era retratada como objeto, nunca como sujeito do desejo. O filme subverte essa lógica ao mostrar uma protagonista exercendo sua vontade e vivendo com mais de um parceiro, algo permitido aos homens, mas proibido às mulheres. O longa, inclusive, ao falar de prazer e sexualidade, coloca em contraste dois modelos de feminilidade: Pity, que vive fora das convenções sociais, e sua irmã, presa ao padrão doméstico, sofrendo com as imposições do patriarcado.
O filme não foi retirado de cartaz por ser escandaloso ou explícito, já que possui apenas uma cena de sexo filmada com delicadeza. O problema estava na sua ameaça simbólica às instituições patriarcais, questionando o casamento tradicional e o papel submisso da mulher na sociedade.
Trautman conduz o filme de maneira simples e direta, sem floreios, aproximando o público dos personagens e dos cenários. O trabalho com os atores é marcante, valorizando a construção coletiva das cenas, com momentos memoráveis envolvendo personagens secundários, como o olhar cúmplice de Dôde e Sílvio, ou a busca delicada de Torres. Darlene Glória se destaca como Pity, no auge de sua carreira, mostrando leveza e espontaneidade. Após ser premiada por Toda Nudez Será Castigada, ela explora um novo registro ao viver uma personagem em busca da própria felicidade, misturando experiências pessoais e construindo uma figura complexa, fácil de se identificar e acompanhar.
Os Homens Que Eu Tive mantém uma forte personalidade brasileira, tanto na linguagem visual quanto na forma de construir cenas. Além dessa maneira própria em lidar com os personagens e com a conexão estabelecida entre eles, em estruturas circulares que despertam a curiosidade e fortalecem o vínculo com os espectadores, dando força à narrativa. Há um conforto no encontro do público com esse universo criado, acolhedor graças à cuidadosa ambientação, locações bem escolhidas e fotografia vibrante de Alberto Salvá. As cores quentes e a atmosfera solar trazem uma leveza que contrastava com o clima opressor da época. A trilha sonora também se destaca, com Caetano Veloso resumindo a essência do filme e de sua protagonista.
Enquanto alguns títulos, os mais reverenciados, enfrentavam o sistema buscando a crítica política direta, a esmagadora maioria apostava no sexo, afinal a pornochanchada nada mais é do que um meio de afrontar e também se anestesiar do sistema. Os Homens Que Tive não se furtar de trazer a política, especialmente quando se assume enquanto manifesto, pois a representação da mulher por uma mulher também é política. É difícil falar o que não seria no cinema e no filme.
Agora, 50 anos depois, Os Homens Que Eu Tive retorna em uma bela cópia restaurada pela Cinemateca Brasileira em parceria com o laboratório Cinecolor e segue atualíssimo, tendo a possibilidade de receber novamente a atenção devida e ser descoberto pelas novas gerações, que se diverte em cada minuto da projeção. Pity é uma mulher da época em que o movimento de contracultura se chocava com a dureza e o quadradismo da ditadura militar. Hoje, seguindo a roda da história, ela surge em uma uma posição de vanguarda, em uma sociedade onde o divórcio já é lei, vejam só; o poliamor é uma realidade debatida naturalmente, e as mulheres têm mais liberdade para experimentar e vivenciar a sua sexualidade.
Um grande momento
A visita de Peter


