Crítica | Streaming e VoD

Persuasão

Remando contra a maré

(Persuasion, EUA, 2022)
  • Gênero: Drama
  • Direção: Carrie Cracknell
  • Roteiro: Ron Bass, Alice Victoria Winslow
  • Elenco: Dakota Johnson, Cosmo Jarvis, Henry Golding, Richard E. Grant, Nikki Amuka-Bird, Mia MacKenna-Bruce, Yolanda Kettle, Ben Bailey Smith, Nia Towle, Izuka Hoyle
  • Duração: 107 minutos

Qual a graça de fazer uma versão idêntica, mais uma variação sobre um mesmo tema, em cima de um produto já testado e aprovado antes? Penso, como alguns colegas, que um verdadeiro conceito de arte estaria em renovar um material conhecido, ou deixá-lo intacto, como um dia foi encontrado. Pois fomos acordados esse julho pelo “escândalo” que seria essa nova versão de Persuasão, um clássico romance da intocável Jane Austen, que cometeu a heresia de ter personalidade. Ora vejam só, quem o cinema pensa que é para mexer com uma vaca sagrada e assim quebrar toda uma santíssima trindade inaugurada por… putz, por absolutamente ninguém. A Netflix estreia hoje um filme que ninguém precisa ter medo, não irá morder nenhum incauto, e pode até ser que encontre novos admiradores. 

A responsável por tal disparate seria a estreante Carrie Cracknell, diretora teatral em seu debut no cinema depois de estar por trás de alguns projetos nos palcos que foram filmados e transformados em produtos de audiovisual. Esse é, no entanto, seu primeiro projeto de teor cinematográfico de verdade; ou não, já que seu nome vem sendo jogado às labaredas pelas ousadias. Escrevendo o roteiro, temos uma dupla que não poderia ser mais oposta – a igualmente estreante Alice Victoria Winslow, muito jovem, e o veteraníssimo Ron Bass, responsável por, entre outros, o memorável roteiro de O Casamento do Meu Melhor Amigo. Juntos, esse trio teve a capacidade de propor algumas licenças poéticas, algum humor menos inocente e alguma sagacidade a um texto publicado há mais de 200 anos. 

Persuasão
Nick Wall/Netflix

Sinceramente, nada do qual Austen não bebesse, ainda que de maneira mais comedida, e muito menos algo que já não tenha sido testado anteriormente. Alguém já esqueceu que “Emma” já virou As Patricinhas de Beverly Hills, que “Orgulho e Preconceito” acabou de virar Fire Island ou que até a cultura indiana da atualidade já foi palco para uma adaptação? Não consigo compreender o porquê de tanto ódio e ranger de dentes para uma produção tão delicada, emocionante e sincera, que se propõe inclusive a uma revisão étnica muito salutar, que pretende sem qualquer resquício de panfleto declarar muitos tipos de igualdade. Aos fãs xiitas da escritora, fica o lamento de perceber que certas coisas precisam ser consideradas intocáveis, e o queixo cai ao perceber que toda a essência da autora está intocada, embora ninguém queira discutir isso. 

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A quem vencer um falatório nada saudável e demasiadamente cansativo, Persuasão é uma bela adaptação para o último romance que foi lançado por Austen ainda viva. A trama em nada mudou: Anne e Frederick tiveram um romance, que foi interrompido por sua falta de grana. No universo de Austen – e da Inglaterra contemporânea a ela – as mulheres não podiam sequer sonhar casar com um homem sem posses, lembram? Pois Frederick volta anos depois, bem rico. E o amor entre eles, que nunca apagou, será posto à prova dessa vez pelos inúmeros entreveros que terão de desviar. Próximo à reta final, alguns sentidos meio agudos vêm à tona no rosto dos atores, talvez deixando claro demais suas intenções, o que não era o caso até ali. Mas isso, na minha humilde opinião, é dos únicos problemas de uma adaptação muito agradável de assistir. 

Persuasão
Nick Wall/Netflix

Parte do sucesso da empreitada está em seu elenco, que se conecta à perfeição com seus personagens, do casal protagonista aos coadjuvantes. Casos de Richard E. Grant e Henry Golding, por exemplo. O primeiro vende sua habitual fleuma e arrogância como ninguém, e garante momentos deliciosamente constrangedores para quem está do lado, enquanto o segundo parece ter encontrado vocação em ser um homem lindo e egocêntrico. Mia McKenna-Bruce consegue ser uma das figuras mais insuportáveis do planeta na pela da irmã mais nova da protagonista, e ainda assim consegue provocar gargalhadas sinceras. E Dakota Johnson e Cosmo Jarvis… nossa, há química pra base da tonelada entre eles, suas performances são arrebatadoras. Ela entende tudo de timing cômico, e ele é um poço de desconcerto, sempre à ponto de desabar. Salta aos olhos como são pessoas opostas, e ainda assim como eles nunca deixam de exalar profundo amor um pelo outro. 

Agora, se o leitor não aguenta mais o efeito Fleabag da quebra da quarta parede, com a protagonista olhando pra câmera e se comunicando com o espectador, pode ser que Persuasão seja um problema, ou um incômodo. Eu, que convivo com isso desde Curtindo a Vida Adoidado e, desde então, tenho meus momentos de Ferris Bueller, não vejo mal algum. O efeito funciona quase sempre – principalmente com um texto excelente como esse – e Johnson é genial em fazer isso valer, nos dando proximidade a questões que hoje nem fazem mais sentido. Persuasão ainda tem uma protagonista que, vivendo nos tempos em que vive, faz o que quer até quando parece que está sendo usada pelos outros. Ou seja, eu comprei quase na totalidade esse “malfeito” da Netflix. Mandem mais. 

Um grande momento
Anne fala em italiano (uma das muitas cenas hilárias do filme)

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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