Crítica | Festival

Piggy

Violências invisíveis

(Cerdita, ESP, 2022)
Nota  
  • Gênero: Terror
  • Direção: Carlota Pereda
  • Roteiro: Carlota Pereda
  • Elenco: Laura Galán, Claudia Salas, Pilar Castro, Carmen Machi, Camille Aguilar, Julián Valcárcel, Mabel del Pozo
  • Duração: 90 minutos

O horror gore se baseia na exposição da violência contra o corpo e está muito ligado ao choque causado por representações gráficas dessa violência. No espanhol Piggy, primeiro longa de Carlota Pereda, o gênero é reafirmado, mas é também retrabalhado. Ali estão as tortura, mutilações e assassinatos, mas há uma inversão quando o roteiro, também assinado pela diretora, se volta para outras violências, nada visuais. Os elementos são postos lado a lado, interagem entre si, e a dinâmica que se estabelece faz um splatter desses de verão, com um serial killer que assombra uma cidade pequena, algo muito mais profundo e interessante.

O filme conta a história de Sara, uma menina gorda e por isso excluída que passa os dias no açougue dos pais esperando pela próxima humilhação do grupo das meninas populares, do qual a ex-amiga de infância hoje faz parte. É um verão quente, e ela olha para aqueles que têm a mesma idade e são barulhentos, divertidos e coloridos querendo ser parte deles. O que recebe de volta é o olhar debochado e os insultos de Maca, a senhora bullying, e a conivência de Claudia, a tal ex-amiga, com todas as agressões sofridas. Assim como em filmes sobre o mesmo tema, e a associação com o mais conhecido deles, Carrie, a Estranha, é natural, chegamos ali com a dinâmica estabelecida. “Cerdita”, ou “Porquinha”, como é chamada por suas agressoras vive seu inferno há anos, já está reclusa em si mesma e quer se esconder do mundo.

Piggy
Cortesia Sundance Institute | Foto: Jorge Fuembuena

A diretora e a atriz Laura Galán, em um trabalho conjunto, expõem esse corpo e trabalham com medo e a opressão que Sara sofre, deixando evidentes a complexidade de relação consigo e com os outros, toda a introversão que faz o corpo se encolher como que querendo desaparecer embora isso seja impossível. A violência, desde aquela mais velada à mais explícita, vai num crescente, causando em quem vê o filme um incômodo inescapável. Ao mesmo tempo, Piggy contrapõe estas agressões a que o corpo é exposto à violência gráfica do splatter e do gore com a chegada de um serial killer no vilarejo. O que está em tela pode não ser novo, mas o modo como se estabelece e valoriza o confronto é. Não se pode comparar a morte à humilhação, esse é o pensamento comum. Será?

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Há um momento genial em Piggy. Genial e terrível. Em uma cena, debaixo d’água, Sara não enxerga e nós quase não notamos o grotesco e repulsivo que nossos olhos são tão treinados para ver. Isso porque a violência e a crueldade de toda a sequência de atos que levaram a jovem até ali fazem com que aquele elemento se torne um detalhe. Pereda, que marcara até então o bullying na esfera psicológica, ali o potencializa, transformando também a opressão, tornando-a muito maior, mais angustiante e desesperada não só para a protagonista, mas para o espectador. Ela direciona nossa atenção e destaca o ponto, mostrando que nem tudo é tão óbvio quanto parece.

Piggy
Cortesia Sundance Institute | Foto: Jorge Fuembuena

Outras camadas são exploradas com a conexão que Pereda persegue. Quando une dois universos, fazendo com que um interfira no outro, o longa cria novas questões. Diante de uma realidade desconhecida, não há como definir motivos e os próximos atos, e tudo vai se tornando nebuloso, há uma dificuldade de Sara em compreender aquela figura nova, algo que também está muito dentro desse jogo de comparação da diretora. O medo está junto com a proteção, a segurança junto com o mal. O longa ultrapassa a questão primeira para alcançar suas consequências e as marcas deixadas. Enquanto as escolhas da direção constroem bem o suspense, roteiro e atuação trazem a realidade de uma pessoa marcada, que tem medo de se posicionar, e nos atiram em sua confusão. 

Piggy segue muito bem assim, em suas contradições propositais e provocações. Mas o filme sofre com um mal comum dos longas que se originam de curtas: a partir de certo ponto, nem tudo parece estar tão bem amarrado como deveria. Embora mantenha a mão firme no horror, assumindo o torture porn de maneira escancarada em sua parte final, há uma dilatação temporal que talvez seja melhor para a demonstração de habilidades técnicas do que para a manutenção da trama em si. Mas até ali tudo foi marcante e elaborado o bastante para garantir o fôlego até o desfecho. Uma experiência, sem dúvida, que vai sair do básico e de algo que podemos associar com coisas já vistas antes, que leva a lugares não esperados, chocando com o que mostra e aquilo que tem a dizer. 

Um grande momento
Fuga submersa

[Sundance Film Festival 2022]

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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