Crítica | Festival

A Metade de Nós

Vivendo incompletos

(A Metade de Nós , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Flávio Botelho
  • Roteiro: Flávio Botelho, Bruno Castro, Daniela Capelato
  • Elenco: Denise Weinberg, Cacá Amaral, Kelner Macêdo, Clarice Niskier, Henrique Schafer, Justine Otondo
  • Duração: 95 minutos

Nunca entendi muito bem o conceito (dúbio) do Grupo Luiz Severiano Ribeiro para o que a sétima arte traria: “cinema é a maior diversão”. Assim que me ‘entendi por gente’, passei a questionar uma possível ambiguidade destinada a esse lema/mantra do maior exibidor do país, que viriam impressos em jornais na minha adolescência ao anunciar as propagandas dos filmes. Esse questionamento foi provocado pelo surgimento desde cedo em filmes como A Metade de Nós na minha vida, lá atrás. Existiria uma elevação da arte cinematográfica enquanto peça descartável, e uma diminuição de uma proposta menos “leve”, digamos, na hora de escolher o que assistir, a seguir? E ainda que a diversão possa ser aplicada aqui, sua validade caminha para um processo mais cerebral do que encontrar ao apagar das luzes – sem qualquer juízo de valor, pelo contrário.

O que narra o filme de Flávio Botelho não é de fácil digestão mesmo, ou melhor, não é um assunto que seja de fácil acesso social. Quantas vezes o suicídio é escondido, como se fosse uma vergonha coletiva? A Metade de Nós está em posição rara, aquele lugar que coloca o tema já na primeira cena, praticamente na primeira fala e daí não há como fugir. Não há e também não há interesse de fuga, o mergulho não somente é total como não deixa ninguém imune. Até porque a escolha não é apenas por um desconforto, mas por dois: não estamos falando apenas de um suicida, mas da história a partir do olhar de seus pais. É uma jornada que procura o dilaceramento e, consciente disso, o faz igualmente sem medo da dor disposta ali, mas sabendo que já há peso suficiente no vislumbre, então é a delicadeza que vai dar o tom coletivo.

Passando ao largo de chafurdar dor ou luto, A Metade de Nós entende que o processo filmado é intrínseco desses sentimentos, e parte para inteirar-se de outras narrativas. Nesse sentido, cabe muito que a aposta no naturalismo seja uma escolha, porque todo o pano de fundo do filme já está submerso em um jogo doloroso de filmar e sentir. Tirar esse peso que já ultrapassa a imagem e garantir a cada momento investigações do cotidiano ao redor do que resta após a passagem do furacão, é uma forma suave de manter a dignidade do projeto, dos seus personagens e também do espelhamento que se persegue. Não há ideia apresentada que não passe por um véu invisível de apresentação do seu avesso, e em como criar uma realidade paralela a um sofrimento esperado.

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Então temos Fran e Carlos nessa busca interna por uma resposta, que talvez nunca venha. Ambos a procuram incessantemente, primeiro juntos e depois em separado, para tentar achar algum sentido ao que aconteceu, algo que responda não apenas ao vazio, mas aos propósitos dos eventos. A Metade de Nós não é um filme sobre encontrar a vazão de tais questões, mas sim sobre o caminho onde os elementos estarão ou não apresentados. Quanto mais rápido eles perceberem que essa sensação é eterna, e que eles precisam lidar de outra forma com isso que os aflige, menos eles estarão longe de um processo de cura, que é necessário. Porque existe uma necessidade de perdão, por tudo que creem não terem conseguido fazer.

Dando vida a esse casal, Denise Weinberg (de Salve Geral) e Cacá Amaral (de Pela Janela) dão vazão a sentimentos inomináveis, que o roteiro os ajuda a desvendar. Grandes atores que são, ainda assim não é fácil exteriorizar o sentido de horror que passa diariamente pela cabeça deles, e que é muito real. Todos os movimentos de seus atores parecem muito críveis e sua jornada particular acaba fazendo sentido quando observamos o quadro de fora, ao final da projeção. Até lá, temos em mãos a imagem da confusão mental, que cada um leva para um lado errado de uma equação complexa de resolver. Entre uma obsessão doentia e um mergulho em um mar de descobertas, o casal acaba por fechar o círculo de sua história de maneira ainda dolorida, mas um pouco mais ciente dos capítulos que virão a seguir. 

Um grande momento

Antes da cachoeira

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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