Crítica | Streaming e VoD

Querida Alice

Silêncios enterrados

(Alice, Darling, EUA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama, Suspense
  • Direção: Mary Nighy
  • Roteiro: Alanna Francis
  • Elenco: Anna Kendrick, Kaniehtiio Horn, Wunmi Mosaku, Charlie Carrick, Mark Winnick
  • Duração: 88 minutos

Estreia da última sexta-feira no streaming da Prime Video, esse Querida Alice é tão desconcertante no desenrolar de seus eventos, que mesmo eles não sendo necessariamente inéditos e originais, é a forma de apresentá-los que faz o serviço parecer tão bem acabado. Essa é a tônica do Cinema, podemos dizer – todas as histórias já foram contadas, como dizem, então o que ficará na memória é como elas foram contadas. Aqui, o ponto de vista imediato (e não o passado) está em curso; tudo que poderia acontecer que daria alguma pista ao espectador será liberado paulatinamente, quando cada memória for acessada mais uma vez. O que encontramos então é uma visão dinâmica e muito crível sobre as violências cotidianas a que uma mulher é capaz de se submeter graças ao poder de sugestionamento.

Dirigido por Mary Nighy e escrito por Alanna Francis, o filme é um apanhado de detalhes que vão sendo descortinados na frente do espectador e que sempre dizem algo, mesmo quando em silêncio. São fios de cabelo sendo arrancados, ou que enforcam as pontas dos dedos, é um olhar distante, uma ausência que se torna cada vez mais frequente, é uma preocupação excessiva com o que suas atitudes representará aos olhos do outro. Muitas dessas afirmações estão emudecidas na ação, que não tem pressa a ser revelada, e faz isso com dedicação ao que o espectador irá encontrar no futuro. Todo esse cuidado representa não apenas naturalismo, mas uma vontade intrínseca de nos inserir a um recorte que se assemelha ao das amigas de Alice, que também se inserem na história quase por um acaso. 

Da premissa instigante, vaza uma urgência do tratamento de seu tema que não ultrapassa o ritmo que a própria produção impõe. Tudo o que acompanhamos em Querida Alice tem um sumo de importância, sem colocar essas situações no quadro engessado de frases feitas. Pelo contrário, é um filme de verbalização econômica, fala muito menos do que qualquer outra obra se dedica a fazer, principalmente nas situações onde se encontra. Ao contrário, vemos esse estudo de uma personagem que parece clamar muda por ser notada em sua dor, em seus disfarces e em seus jogos particulares. Desse jeito, nos aproximamos com tranquilidade de Alice e percebemos que seu valor está além do que sofre, embora sua história seja circunspecta. 

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Se não adianta cobrar um outro ritmo ao que Nighy tenta elaborar aqui, nos cabe como espectadores adentrar esse universo que observa a vida pelos significados que os silêncios muitas vezes correspondem. Seria uma observação pertinente dizer que Alice estava em busca de um pedido de socorro não-audível, mas Querida Alice apenas deixa claro que seu desespero estava exposto nos momentos solitários. O filme constrói a relação em foco com detalhes na vítima do abuso – todos os tipos de abuso, principalmente o mais difícil de detectar por quem sofre, o psicológico. Mas está tudo, a princípio, envolvido por sua ótica, ainda obscurecida por um temor crescente e vindo de algum lugar desconhecido, que desencadeia inúmeros traumas e neuroses diárias. O horror do que acontece está fora do plano, e o que está dentro tem apenas a visão da solidão da protagonista. 

Durante uma viagem de Alice com suas amigas, onde percebemos seus inúmeros subterfúgios, é que a produção começa a adquirir ares de cinema de gênero, com o terror à espreita junto às personagens. A figura masculina, primeiramente verbalizada, acaba por adentrar a imagem para além da recordação, e mesmo que não forneça ameaça física, Querida Alice muda de tom por completo. Tudo soa como ameaçador, mesmo a gentileza e o aparente cuidado, nada mais está solitário em cena; esse trabalho é inteiramente do talento de Nighy. A diretora cria um clima necessário para receber esse personagem reconfigurado, e sua atmosfera levada para um lugar não visto antes retrabalha nosso olhar sobre a produção inteira. 

O talento de Anna Kendrick (indicada ao Oscar por Amor sem Escalas) é o arremate para que sua personagem, que é o vetor de eventos, transforme Querida Alice em uma experiência além do estudo de personagem, além da reconstrução de gênero, e muito além de merchandising social. Nas entrelinhas, estão sendo urdidas ideias muito vibrantes a respeito de Cinema, que mostram uma autora com vibração para observar à distância o detalhamento de uma narrativa. Nada é exposto de maneira óbvia, você precisa querer mergulhar para reconhecer o horror que está sendo fomentado ali. Acima de tudo, uma experiência que, para longe do que fala, nos mostra uma coragem para falar o que quer de uma maneira muito refrescante. 

Um grande momento

O confronto na estrada, e suas disposição de corpos

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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2 Comentários
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Isabella
Isabella
20/08/2023 17:23

Contém Spoiler:
Não gostei. Sem emoção nenhum, sem final, sem narrativa, sem nada que prenda!!! O que aconteceu com a menina desaparecida?

Juliana Costa
Juliana Costa
24/05/2023 15:08

Tudo soa como ameaçador, mesmo a gentileza e o aparente cuidado, nada mais está solitário em cena

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